quarta-feira, 10 de abril de 2024

Arrivistas, bajuladores e embusteiros? Non, mèrci! Non, mèrci! NON, MÈRCI!!

(www.gallica.bnf.fr)

    Cyrano de Bergerac poderia facilmente ser entitulado “O Penacho de Cyrano” se assim fosse da vontade de Edmond Rostand, em 1897. Toda a peça gira em torno de sua personalidade forte, irascível e colérica. Orgulho menor apenas que seu nariz (que ele não nos ouça 🙏). O penacho, a crista, o topete, ainda hoje são sinônimos de petulância, de intransigência, mas também de vaidade e de altivez.

    Apaixonado pela vida, pelas palavras e pela prima Roxane, o poeta-espadachim esgrima-se pelas sombras e pelos versos contra os poderosos França do século XVII, na qual reina uma nobreza hipócrita e decadente, sustentada por conchavos de subalternos compadrinhados, tão bajuladores quanto ambiciosos.

    Seu penacho é delineado ao levantar-se contra essa gente lodosa, de cortesia barata, onde favores são trocados por interesses, onde desavergonha-se em ser parasita e leviano. O poeta sonha em ver a encenação de Agripina, uma peça de sua autoria. Mas deveria aceitar ter um padrinho, um mecenas que lhe abençoe, um protetor a quem vá dever favor eternamente e, pior, a quem terá de sujeitar seu texto a aprovação e a possíveis alterações e retoques. Ter sua obra maculada por um idiota qualquer? Que ofensa, que ferida na honra!

Cyrano se revolta em um discurso colérico sobre brio e dignidade. Dobrar-se, lamber botas, dever favores? Não! Rastejar-se em grupos de bajuladores e hipócritas? De modo algum! Bancar o cachorro e ganhar um osso para roer? Nunca! Mendigar elogios, esperar presentes, bancar o palhaço? Jamais! Ajoelhar-se diante de gente tão vil? Não, obrigado! Não, obrigado!  Não, obrigado!

 O poeta dá seu revide a essa gente desaplaudida não pelo peso da espada, mas pela leveza da palavra. Ao responder dessa forma àqueles que alcançam a glória rastejando-se, ergue seu penacho não como orgulho presunçoso, mas pela pluma altiva e graciosa polidez. O golpe certeiro e letal vem pela língua afiada. Touché!

A repetição de “Non, merci” aqui é não só traço retórico de sua ironia. “Merci”, “mercê”, “mercês” são sinônimos de graça  leveza, elegância  contra a fealdade e o peso dos tempos de genuflexãoTouché!

Cyrano não quer ser popular e famoso, coisa de lambedores de tapetes; quer ser livre, mas sabe que a liberdade é irmã da solidão. Oscar Wilde concordava: sempre há muito de medíocre na popularidade.

A segunda parte do discurso é solitária, sonhática e ébria — como quem busca conhecimento e esperança, entre livros, lunetas, astrolábios, ampulhetas e sob o Sol matinal  o herói divaga sobre sua tragédia íntima. Infeliz no amor, resta ao poeta casar-se com a Lua, beber de um só gole a vida, em toda sua intensidade e sua transitoriedade. Contra a mentira, a covardia e os conluios, sabe que seu final é trágico: Não se luta apenas na esperança da vitória”, ele diz. Não vai subir muito, mas colherá o fruto do próprio pomar e a flor do próprio jardim.

* * *

 Foi enorme o impacto que esse discurso me causou quando eu tinha 12 anos e li Cyrano de Bergerac, na escola, numa adaptação em prosa. Anos mais tarde comprei o texto em teatro, capa dura, cópia que ainda hoje guardo carinhosamente na estante. Lembro da catarse em ler uma peça de teatro pela primeira vez. Por ocasião do destino, na década de 1990, ganhava as telas o filme dirigido por Rappeneau e estrelado magnificamente por Depardieu; esses filmes que só passam às madrugadas. Ainda trago plasmado o mèrci enfurecido de Deperdieu ao invés do oxítono e correto merci. Em 2018 pude assistir no cinema, já como professor de francês, com meus alunos, no Festival Varilux de Cinema Francês (mas recomendo todas as adaptações cinematográficas antigas e atuais, inclusive Roxanne, com Steve Martin).

A escrita de Rostand, no final do romantismo, enseja o protagonista introspectivo, lírico e trágico, de aparência grotesca em contraste com a alma sublime, condenado à solidão e à desventura. Assim Victor Hugo cria seus protagonistas Quasímodo e Gwynplaine. A loucura aliada ao cavalheirismo vem de Dom Quichote de Cervantes. Também há spin-offs do classicismo: assim como Penélope, em Odisséia, Roxane recolhe-se à tecitura de um longo bordado ao rememorar seu amor e, assim como Ulisses, Cyrano é ao mesmo tempo explêndido guerreiro e mestre da oratória e da retórica, herói da palavra.

Devo muito a Cyrano. Foi minha primeira experiência com a língua francesa, pela qual continuo enamorado; meu primeiro longa-metragem de falas declamadas, em seus versos originais, do início ao fim. A essa altura, Cyrano fazia par com O Grande Mentecapto de Fernando Sabino e todos os filmes de Chaplin.

Hoje, ao assistir embevecido Cyrano de Bergerac na Comedie Française, dirigida por Emmanuel Daumas, sinto-me como quem paga, com juros, uma antíga dívida consigo mesmo... A atuação de Jennifer Decker (Roxane) e Laurent Lafitte (Cyrano) e de toda a trupe são realmente impressionantes.


(www.allocine.fr)

Mas revisitar, Non, merci, talvez seja ainda mais arrebatador pois, após tantos anos, os antagonistas da história continuam por aí: tanto na época de Rostand quanto na nossa, o que não falta são bajuladores de plantão, carreiristas descarados, gente reptílica e mesquinha, de caráter volátil e honra de ocasião. Ao menos temos Cyrano para nos inspirar contra esses de alma servil e vulgar.

Sem spoilers: o último verso da peça termina com Cyrano de Bergerac dizendo algo como: posso não ter alcançado tudo que almejei, mas não carregarei nenhuma mácula, jamais abri mão de meu panache... do orgulho, da dignidade, do brio, da distinção, da autenticidade, daquilo que o torna único, etéreo e eterno.

    
* * *

 


« Et que faudrait-il faire ? Chercher un protecteur puissant, prendre un patron. Et comme un lierre obscur qui circonvient un tronc. Et s’en fait un tuteur en lui léchant l’écorce. Grimper par ruse au lieu de s’élever par force ? Non, merci!

Dédier, comme tous ils le font, Des vers aux financiers ? se changer en bouffon Dans l’espoir vil de voir, aux lèvres d’un ministre, Naître un sourire, enfin, qui ne soit pas sinistre ? Non, merci!

Déjeuner, chaque jour, d’un crapaud ? Avoir un ventre usé par la marche ? une peau Qui plus vite, à l’endroit des genoux, devient sale ? Exécuter des tours de souplesse dorsale ?… Non, merci!

D’une main flatter la chèvre au cou Cependant que, de l’autre, on arrose le chou, et donneur de séné par désir de rhubarbe, avoir un encensoir, toujours, dans quelque barbe ? Non, merci !

Se pousser de giron en giron, Devenir un petit grand homme dans un rond, Et naviguer, avec des madrigaux pour rames, Et dans ses voiles des soupirs de vieilles dames ? Non, merci !

Chez le bon éditeur de Sercy Faire éditer ses vers en payant ? Non, merci !

S’aller faire nommer pape par les conciles Que dans les cabarets tiennent des imbéciles ? Non, merci !

Travailler à se construire un nom Sur un sonnet, au lieu d’en faire d’autres ? Non, Merci !

Ne découvrir du talent qu’aux mazettes ? Être terrorisé par de vagues gazettes, Et se dire sans cesse : « Oh, pourvu que je sois Dans les petits papiers du Mercure François ? »… Non, merci !

Calculer, avoir peur, être blême. Préférer faire une visite qu’un poème. Rédiger des placets, se faire présenter ? Non, merci ! Non, merci ! NON, MERCI !!

Mais… chanter, rêver, rire, passer, être seul, être libre.
Avoir l’œil qui regarde bien, la voix qui vibre.
Mettre, quand il vous plaît, son feutre de travers.
Pour un oui, pour un non, se battre, — ou faire un vers ! 
Travailler sans souci de gloire ou de fortune, 
À tel voyage, auquel on pense, dans la lune ! 
N’écrire jamais rien qui de soi ne sortît, 
Et modeste d’ailleurs, se dire : mon petit,
Sois satisfait des fleurs, des fruits, même des feuilles, 
Si c’est dans ton jardin à toi que tu les cueilles ! 
Puis, s’il advient d’un peu triompher, par hasard, 
Ne pas être obligé d’en rien rendre à César, 
Vis-à-vis de soi-même en garder le mérite, 
Bref, dédaignant d’être le lierre parasite, 
Lors même qu’on n’est pas le chêne ou le tilleul, 
Ne pas monter bien haut, peut-être, mais tout seul !»

***

"Que queres que eu te faça? Que vá ver um patrono em voga, um protetor. E como será servil que em busca de tutor. — Lambe a casca do tronco em roda ao qual se torça — cresça por manha, em vez de me elevar por força? Não, obrigado!

Ofertar meus versos a um banqueiro, como é vulgar! Fazer-se vil pantomimeiro, na esperança de ver nos lábios dum ministro sorriso que não tenha uns longes de sinistro? Almoçar cada dia um sapo — e não ter nojo. Gastar o próprio ventre a caminhar de rojo? Não, obrigado!

Trazer os joelhos encardidos? Exercitar a espinha em todos os sentidos? Não, obrigado!

Acender um círio a São Miguel. E acender outro círio ao réprobo Lusbel? Libertar o galé, com medo do patíbulo? Andar a cada canto e sempre de turíbulo? Não, obrigado!

Galgar trapézios de acrobata? Ser um grande homenzinho em roda aristocrata? Remar com os madrigais, e ter as bujarronas túmidas dos senis suspiros das matronas? Não, obrigado!

Gozar de sermos editado pelo editor Sercy... pagando-lhe? Não, obrigado!

Ser escolhido papa em todos os conclaves. Feitos por imbecis tão nulos quanto graves? Não, obrigado!

Assentar meu nome e posição num tal soneto, em vez de fazer outros? Não, obrigado!

Encontrar talento nos sendeiros. Aterrar-me de ouvir estranhos noveleiros. E sentir um prazer na reles esperança de ter qualquer menção no Mercúrio de França? Não, obrigado!

Calcular, com medo e covardia. Preferir fazer uma visita a uma poesia? Redigir petições e pertencer a alguém? Não, obrigado! Não, obrigado! Não, obrigado!

Porém cantar, sonhar, rir, passar, ter liberdade e fibra;
ter a vista segura, e ter a voz que vibra.
Pôr o meu feltro à banda, e — espanto dos perversos —
Por um sim por um não me bater ou fazer versos.
Trabalhar, sem ter fito em lucros e honrarias.
Numa excursão à lua e noutras fantasias!
Nada escrever jamais que eu mesmo não produza.
E, modesto, dizer à minha altiva musa:
“Seja do teu pomar — teu próprio — o que tu colhas;
embora fruto, flor ou simplesmente folhas”.
Depois, se acaso a glória entrar pela janela,
a César não dever a mínima parcela.
Guardar para mim mesmo a gratidão mais pura;
enfim, sem ser a hera — a parasita obscura — 
nem o carvalho e o til, gigantes do caminho —
subir, não muito, sim, porém, subir sozinho.

(www.songe.fr)             

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Professores da UFT e da UEG apresentam trabalho na Universidade Le Havre-Normandie, na França.


    Os professores Vitor Hugo Abranche de Oliveira (Universidade Federal do Tocantins – @oliveira.vha) e Keides Batista Vicente (Universidade Estadual de Goiás – @keidesbatista) apresentaram trabalho intitulado “Fake News et la construction d’une politique negacioniste et revisioniste sur les violations des droits d’homme dans l’histoire récente du Brésil”. Tal pesquisa foi apresentada no âmbito do colóquio “La Néo-reaction — Extrême Droite et Mouvements Antidémocratiques en Amérique Latine au XXIème Siècle, dans le Contexte Numérique”, organizado pelo Groupe de Recherche Identités et Cultures da Universidade Le Havre – Normandie, coordenado pelos professores Alberto Pacheco Benites et Myriam Boussahba-Bravard. Os professores foram os únicos brasileiros em tal evento internacional, que contou com a apresentação de trabalhos de professores peruanos, colombianos, chilenos, argentinos, equatorianos, franceses, espanhóis e portugueses. Em um primeiro momento, o tema desenvolvido pelos professores brasileiros explora as últimas quatro décadas de história recente do Brasil, desde a lei de anistia de 1979, passando pelo processo de redemocratização nas décadas de 1980 e 1990, a criação da Comissão Nacional da Verdade na última década — abarcando a legislação e o conceito de Justiça de Transição —, até o recente governo de extrema direita realizado entre os anos 2019 a 2022. No segundo momento, os professores desenvolveram hipóteses e debate sobre as estratégias negacionistas e revisionistas realizadas pelas “milícias digitais” a serviço de tal governo. A hipótese sustentada é a de que o negacionismo é um projeto político e, como tal, é sólido e arquitetado dentro de valores de ameaça econômica, desestabilização política, desconfiança do passado, ódio ao presente e medo do futuro.







Notícia igualmente publicada no site da UFT:

segunda-feira, 27 de março de 2023

“Condenados a viver” — a história do suicídio e sua relação com as autoridades na visão de George Minois.

               

(foto: Vitor Hugo)

Quando estávamos no 2º Grau, hoje Ensino Médio, tínhamos um amigo que tentou suicídio. No dia seguinte, o diretor proibiu todos os colegas de sala de tocar no assunto “A última coisa que ele precisa nesse momento é de perguntas!”, sentenciou. Silêncio absoluto. Todos com olhos arregalados. Não sei se esse amigo, assaz tímido, tinha outros lugares onde pudesse conversar sobre seus problemas. O silêncio se fez eco: dois anos depois ficamos sabendo que ele havia se jogado da janela de um prédio.

Naquele momento, a política do avestruz se livrou de um problema entre as paredes da escola, mas isso não impediu que nosso amigo se matasse pouco depois. E isso diz muito do que são as escolas brasileiras, muito menos preocupadas com os o estado emocional de seus alunos do que com os índices mercadológicos de avaliação e aprovação. Os assuntos mais sensíveis da vida da criança e do adolescente — a morte, a vida, as amizades, os afetos — devem ser evitados na escola e ficar no âmbito da família e da religião.

Dentre os principais problemas a serem enfrentados quando tratamos do aniquilamento de si mesmo um dos mais importantes é censura da fala, da conversa. A questão é que, na ponta, ela também proíbe a escuta. A cada Setembro Amarelo retorna a necessidade de lidarmos melhor com esse problema mas, no geral, há uma covardia tácita e uma série de tabus que assolam o debate logo no início.

George Minois nos mostra que quando o assunto é suicídio, as atitudes típicas das autoridades nos pequenos e nos grandes espaços, são a negligência e a desídia, envernizadas de toda sorte de pré-julgamentos moralistas. Ao apregoar o silêncio, negligenciam o problema, mantendo o assunto no campo do misticismo religioso e moralista; ao passar o problema adiante, terceirizam a responsabilidade. Essa atitude, ou é um erro estratégico na condução do problema, pois evidentemente não o evita; ou coroa a insensibilidade dos que apenas estão preocupados em manter a ordem das coisas. Os dois motivos. Em última instância, Minois mostra que, ao demonizar o suicídio e condená-lo ao silêncio, as autoridades não estão preocupadas com a vida, mas sim com seus projetos de poder. Talvez, se pudéssemos ter conversado com nosso amigo, ele não teria se defenestrado.

Há vários percursos para desmistificar o suicídio, torná-lo acessível, discutível e, quiçá, evitável. Minois percorre o caminho da história das mentalidades e do materialismo histórico: compreender os meios materiais que circundam o ato fatal e as redes de poder que sustentam o fenômeno social na longa duração da história do suicídio. O autor nos propõe compreender, então, o fenômeno em sua esfera político-econômica e jurídica. Expõe como a hiper-criminalização do suicídio na Idade Média revela a estrutura de poder social que, além de não conseguir impedir o ato, ainda respinga sua ignorância nos nossos dias.

 

-------------------------------------------

Antes de entrar em A História do Suicídio — a sociedade ocidental diante da morte voluntária, duas críticas necessárias às pretensões do título: 1º. Recortar a “sociedade ocidental” em França, Inglaterra e um pouquinho da Alemanha — desprezando-se o resto da Europa, os nativos das Américas, os imigrantes europeus e a população africana, nativa ou escravizada nas Américas — seria amador para um historiador iniciante, uma falta de recorte, mas é um francês escrevendo... então ok, vamos lá, é “a” sociedade ocidental, ok. 2º. Igualmente, o título sugere um recorte temporal bem mais amplo, quando o livro, em sua densidade, apresenta o século XVI ao século XVIII. Ok, ok.

-----------------------------------------

 

Estudioso das mentalidades religiosas medievais, Minois começa pelo século XIV, período mais tenso na repressão ao suicídio. O autor observa que as origens da proibição datam da estruturação do cristianismo católico com Santo Agostinho. Importante notar que o Direito Canônico, regido pela Igreja Católica, era predominante e soberano sobre o Direito Civil.

As leis Canônicas condenavam particularmente os que ousavam tirar a própria vida. A legislação era baseada no 6º mandamento, Não matarás: por não especificar “quem”, pressupunha que a pessoa não pode atentar contra si própria). Garantia sanções à família, confisco dos bens dos herdeiros e punição implacável ao corpo. Estratégico, o autor nos chama atenção para a dupla condenação aos suicidas: os corpos sofriam suplícios impiedosos, eram “executados” publicamente em cerimônias cercadas de todo tipo de violência e superstição; já suas almas, é claro, eram desciam de elevador para o inferno.

Minois destaca o ódio à vida e ao mundo biblicamente referendado: “Aquele que ama a sua vida, a perderá; ao passo que aquele que odeia a sua vida neste mundo, a conservará para a vida eterna.” João 12: 25. Esse sentimento mantinha a vida social e religiosa no limite entre de desejo de vida e desejo de morte.

 

“A lista de passagens do Novo Testamento em que Paulo, Tiago, Pedro, Lucas e João exortam os fiéis a odiar a vida terrena é interminável. O tema retorna sempre: a vida é desprezível, é um exílio cuja duração devemos desejar que seja a mais curta possível” 28.

 

O indivíduo deve odiar a vida, mas nunca a abreviar. Deve suportar os sofrimentos com coragem e jamais se desesperar; deve expiar seus pecados diante da confissão e das orientações do clero. O desespero é imperdoável, pois contesta e descrê a função redentora da Santa Igreja e afronta a possibilidade do milagre divino. O remédio para o desespero é a confissão e a aceitação do pecador em continuar a viver para redimir-se através das penitências.

Minois observa que as esferas político-religiosas se con-fundem:

 

“Nas duas esferas, a proibição do suicídio acompanha o recuo da liberdade humana: o homem perde o direito fundamental de dispor de sua própria pessoa, em proveito da Igreja, que tem um controle total sobre a vida da pessoa e retira sua força do número de fiéis, e em proveito dos senhores, alguns dos quais são eclesiásticos, que precisam conservar e aumentar sua mão de obra, em um mundo subpovoado no qual a fome e as epidemias comprometem regularmente a valorização das propriedades.” 36

 

Assim, controlando e ameaçando o corpo e a alma, os poderes político e religioso inocularam o medo nos fiéis. Uma das obras que mais ajudaram a popularizar a imagem das trevas, A Divina Comédia (1472), de Dante, no século XV, aloca os assassinos de si mesmos no Sétimo Círculo, um dos mais profundos. Até hoje, muito da visão que temos do inferno é derivada dessa obra. Os suicidas aparecem no Canto XIII:

 

Quando os laços do corpo uma alma ímpia

Destrói por si, do seu furor no enleio

Ao círc’lo sete Minos logo a envia.

 

Na selva tomba e aonde acaso veio,

E como o seu destino lhe consente,

Aí, qual grão germina de centeio,

 

Vai crescendo até ser árvore ingente:

As Hárpias, que a fronde lhe devoram,

Causam-lhe dor, que rompe em voz plangente.

 

Hemos de ir onde os corpos nossos moram,

Como as outras, mas sem que os revistamos,

Mor pena aos que em perdê-los prestes foram.

 

Arrastados serão por nós: aos ramos

Pendentes ficarão nesta floresta

Nos troncos, em que, assim, vedes, penamos.

 

Imóveis, transformados em árvores secas e mortas, devorados perpetuamente por Hárpias, esses infelizes compõem uma floresta de gemidos e lamentos terríveis. Cena sensibilizou Gustave Doré (1861), que ilustra a capa do livro de Minois:





Numa época em que se questionava a liberdade e suas limitações, é bastante emblemático que o inferno dos suicidas seja o inferno da imobilidade. Estar preso ao chão e devorado lenta e eternamente por harpias. Parece ser um aviso a quem um dia ousou dar-se a liberdade de tirar a própria vida.

Voltando para o mundo dos vivos, a primeira pena era a o confisco dos bens, deixando a família culpada e desamparada, direcionando-os à coroa e/ou aos senhores locais. Tal sanção visava fazer com que o indivíduo pensasse duas vezes antes de atentar contra si mesmo, sob o risco de deixar os herdeiros desamparados.

Em seguida, o suplício do corpo, que precisa mostrar que o suicida inverteu a ordem das coisas. O caráter público do espetáculo grotesco era mais importante que as punições em si, já que a ideia era dar o exemplo a ser evitado. Minois descreve um caso entre tantos outros: após ser arrastado em praça pública e re-enforcado por dias,

 

“... o cadáver será colocado com o rosto virado para baixo, em um buraco com orientação norte-sul, em vez da orientação normal oeste-leste, posição favorável à ressurreição, cujo sinal virá do leste. A estaca atravessada no corpo também pode impedir a ressurreição, e, em todo caso, não permitirá que o suicida venha incomodar os vivos, enquanto o sepultamento em uma encruzilhada o fará hesitar, ao mesmo tempo que impressionará os fiéis que se sentirem tentados a se matar. Em 1590, o médico-legista da cidade de Londres chega mesmo a ordenar que a ponta da estaca que serviu para pregar o cadáver de Amy Stoke seja exibida para servir de exemplo. Outras vezes, o suicida é enterrado na parte norte do cemitério, junto aos excomungados e aos não batizados, de todos aqueles que foram excluídos da salvação eterna.” 91

 

Essa atitude de imobilizar o defunto ou, em outros casos, decepar partes de seu corpo, mostra a inquietação dos vivos para com os mortos, uma necessidade de se precaver de um morto possivelmente vingativo. Atitude sintomática que revela, de um lado, a culpa dos vivos em não poder ter evitado o ato, e daí o medo de que ele volte para atormentar os viventes; e, de outro, de maneira inequívoca, o grau de primitivismo supersticioso que o cristianismo possui e dissemina, alimentando o medo do sobrenatural.

Ora, qualquer debutante em legislação sabe que não se proíbe (com veemência) aquilo que não se deseja (com igual intensidade). Se é prescrita tamanha severidade de penas, é porque há uma forte razão de afastar da população esse desejo: numa época em que as pestes e as guerras devastavam regiões inteiras, a jurisdição revela o temor das autoridades em perder o controle sobre as atitudes de liberdades individuais, ameaçando tanto mão de obra barata que sustenta os estratos sociais quanto a ordem vigente.

Procurando construir uma “história do suicídio no ocidente”, Minois retorna à Idade Antiga, para enfatizar que, para os gregos, os romanos, os hebreus e os pagãos não há uma conclusão final, nem condenatória, nem absolutória. A diversidade de casos, motivações e de contextos produzem uma visão nada monolítica do suicídio, variando das avaliações mais generalizadas às mais individualizadas. Entre os romanos, a forte referência dos estoicos, seu sentimento de desprendimento e desapego em relação à vida, fazia os romanos encararem o suicídio como o remédio acessível, solução racional de todos os males da vida.

Mesmo no início do cristianismo católico, os posicionamentos eram bastante ambíguos. Uma opinião condenatória mais unânime só seria estabelecida com Santo Agostinho e a imposição da condenação se deu aos poucos a partir do século V, nos lugares e épocas em que o interesse político-religioso passou a oprimir as liberdades individuais.

O básico da argumentação condenatória segue a lógica da hierarquia social: a alma humana pertence Deus assim como o corpo do servo pertence ao Rei. Atentar contra si, portanto, é um duplo atentado à propriedade dos senhores. O suicídio só será passível de absolvição se representa um martírio político, morrendo em nome do rei ou um martírio religioso, morrendo em nome da Igreja, motivações essencialmente das elites. Em casos de suicídio aparentemente sem razão, que era o caso das classes mais pobres, era sumariamente condenado.

Observemos, já de antemão, que os suicídios “heroicos”, em nome de uma causa nobre, não alteram, pelo contrário, reforçam a ordem social. O problema são os suicídios dos mais obres, que oferecem risco a essa ordem.

O autor começa a sustentar sua tese político-econômica ao observar que, na Idade Média, os mais pobres estão muito mais sujeitos às punições do que os mais ricos. Às classes nobres e eclesiásticas, suicídio poderia ser facilmente substituído pelo martírio em prol da sociedade: os que possuem os meios físicos para as batalhas e os meios de comunicação (escrita) para sustentar essa narrativa. Assim, morrer pela espada, em nome do rei ou de uma guerra santa, um duelo em nome da honra, suicídios em nome do amor, ou mesmo o suicídio evidente, voluntário, mas por uma causa “nobre”, livravam as classes aristocráticas de punições. As condenações mais duras — e essa é uma das teses centrais do livro — não são isonômicas. Aos mais pobres, sobravam as formas de se matar de maneira indigna, que não dependem de posses materiais: ou afogamento ou enforcamento, e sem deixar qualquer explicação por escrito, devido ao analfabetismo. No caso da forca, facilmente associada à imagem do traidor Judas.

A abundância de documentos em relação aos grupos mais ricos e a escassez nos grupos mais pobres revela o desprezo dos que podiam escrever os relatórios e as estatísticas, ou seja, dos que dominavam a narrativa.

Aos mais abastados, a liberdade e a glória muitas vezes eram sustentadas por cartas em que podiam justificar o heroísmo; geralmente iletradas, as pessoas das classes camponesas não podiam explicar seus motivos, cercando o suicídio de mistério, de atribuições ao diabo, o que conduzia a punições mais duras e mais medo. A única salvação para as classes mais pobres era alegar loucura, por onde a família tentava escapar das sanções políticas, religiosas e supersticiosas. Mas os julgamentos eram muitas vezes tendenciosos, conforme os interesses das autoridades locais em confiscar ou não os bens.

Mas é fundamental perceber que as ameaças severas, a tortura do defunto, a confisco dos bens e mesmo a condenação prévia ao inferno não surtem efeito na pessoa decidida a se matar. Esse é um ponto central para compreendermos o suicídio. De acordo com o autor, a ameaça condenatória e o aumento da severidade das penas nunca surtiram efeitos na diminuição ou aumento das estatísticas de suicídios. Como convencer uma pessoa que o inferno é ruim se ela já vive o próprio inferno na Terra? Uma pessoa que opta por aniquilar-se está tão desesperada que a ameaça do inferno não lhe afeta muito.

Além disso:

 

“O uso exagerado do medo na religião nascida da Reforma e da Contrarreforma leva a um resultado contrário do previsto: tendo perdido a esperança de alcançar a salvação, alguns espíritos frágeis ou que sofrem uma crise momentânea correm ao encontro da morte. Já que a condenação eterna é certa, que importa o momento da partida?” 165

 

Na ausência de qualquer investigação médica ou psicológica acerca do problema até final do século XVI, o suicídio era um problema a ser tratado no âmbito moral-religioso. E aí, de acordo com o autor, não há freios para a ignorância, o misticismo e as superstições. Qualquer semelhança com nossos dias não é por acaso. Mas a tese de Minois é que essa limitação do debate ao campo moral-religioso sempre foi um verniz mal disfarçado para os interesses das autoridades em sua manutenção do poder.

Não por coincidência, portanto, o início da secularização e da descriminalização do suicídio é contemporâneo ao Renascimento, à relativização do poder da Igreja, à retomada e revalorização de suicídios greco-romanos e pagãos (nem condenáveis nem perdoáveis) e ao avanço da medicina. O resultado é fundamental: as primeiras contestações às origens místicas do suicídio dão início a uma racionalidade mínima e à possibilidade de expressão e debate sobre as origens das angústias humanas.

O Renascimento retomará dos gregos a ideia de liberdade em desprender-se da vida no momento certo:

 

“Desde a época mais remota, o pensamento grego formulou a questão fundamental do suicídio filosófico. Os cirenaicos, os cínicos, os epicuristas e os estoicos reconhecem, todos, o valor supremo do indivíduo, cuja liberdade reside na capacidade de decidir ele mesmo a respeito de sua vida e de sua morte. Para eles, a vida só merece ser conservada se for um bem, isto é, se estiver de acordo com a razão e a dignidade humana, e se gerar mais satisfação do que sofrimento. Caso contrário, é uma loucura preservá-la” 53

 

A postura não é de apologia ao suicídio, mas de compreensão do valor da vida, de colocar-se como senhor de sua própria existência. Essa ideia de “senhorio de si próprio” é absolutamente contestatória numa época em que se acreditava em que a alma pertencia a Deus e o corpo ao rei. A saída do teocentrismo para o antropocentrismo deu início ao processo de alforria do ser humano a essas servidões.

São retomados os pensamentos de Sêneca, romano, na defesa de uma saída racional e honrosa da vida, antes do envelhecimento, de suas vergonhas e de seus sofrimentos. Para evitar o clima de fim-de-festa da velhice, é fundamental saber retirar-se no momento certo: “é preciso estar muito bêbado para, depois de beber o vinho, beber também a borra” 63. Os suicídios políticos são revalorizados e os únicos condenáveis são os dos escravos e dos soldados.

O Renascimento também seria importante para trazer o suicídio para a reflexão pela via das artes, da pintura, da literatura e, no caso do teatro, para popularizar histórias de Gregos e Romanos entre a massa iletrada. Um assunto-tabu, antes interdito e rodeado de superstições, agora poderia ser ao menos levado ao palco. Gozando da liberdade artística, as artes puderam metaforizar, relativizar e até sublimar o assunto antes sumariamente condenável. Através dos personagens, o suicídio conseguia esgueirar-se e escapar da reprovação das autoridades. “O romance permite apresentar livremente os problemas, e o simples fato de apresentá-los equivale a contestar a moral tradicional” 127.

Aos poucos, a partir do séc. XVI, os tribunais começam a abrir espaços para tolerâncias, compreensões e possíveis absolvições entre os limites da loucura e da sabedoria. A ascensão da sociedade burguesa, do protestantismo, do heliocentrismo e das cidades acentua o questionamento os valores tradicionais até o limite do apocalipse, recrudescendo o individualismo, o isolamento e as angústias.

É nesse âmbito de ensimesmamento, de dúvida entre continuar ou não a caminhada da vida, que surge o mais famoso solilóquio do teatro, em Hamlet (1600), de Shakespeare, na tradução de Machado de Assis:

 

“Ser ou não ser, eis a questão. Acaso

É mais nobre a cerviz curvar aos golpes

Da ultrajosa fortuna, ou já lutando

Extenso mar vencer de acerbos males?

Morrer, dormir, não mais. E um sono apenas,

Que as angústias extingue e à carne a herança

Da nossa dor eternamente acaba,

Sim, cabe ao homem suspirar por ele.

Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe?

Ai, eis a dúvida. Ao perpétuo sono,

Quando o lodo mortal despido houvermos,

Que sonhos hão de vir? Pesá-lo cumpre.

Essa a razão que os lutuosos dias

Alonga do infortúnio. Quem do tempo

Sofrer quisera ultrajes e castigos,

Injúrias da opressão, baldões de orgulho,

Do mal prezado amor choradas mágoas,

Das leis a inércia, dos mandões a afronta,

E o vão desdém que de rasteiras almas

O paciente mérito recebe,

Quem, se na ponta da despida lâmina

Lhe acenara o descanso? Quem ao peso

De uma vida de enfados e misérias

Quereria gemer, se não sentira

Terror de alguma não sabida coisa

Que aguarda o homem para lá da morte,

Esse eterno país misterioso

Donde um viajor sequer há regressado?

Este só pensamento enleia o homem;

Este nos leva a suportar as dores

Já sabidas de nós, em vez de abrirmos

Caminho aos males que o futuro esconde;

E a todos acovarda a consciência.

Assim da reflexão à luz mortiça

A viva cor da decisão desmaia;

E o firme, essencial cometimento,

Que esta ideia abalou, desvia o curso,

Perde-se, até de ação perder o nome.”

 

Pela primeira vez o suicídio é visceralmente exposto em seu momento de dúvida mais atemporal, humana e universal: diante de tantos sofrimentos inevitáveis e irremediáveis do viver, deve-se cometer ou não o ato? existir ou não existir? ser ou deixar de ser?

Aos poucos, vemos uma evolução no cuidado com a forma como se tratava o suicídio. O ato era chamado até o séc. XVI de “homicídio de si mesmo”, sendo, portanto: Não matarás. Quando o ato passa a ser chamado de “suicídio”: sui (de si) — cædes (assassinato) na Inglaterra do séc. XVII, demonstra mudança de concepção em relação ao Não matarás, pois se torna uma outra categoria, se afastando do “homicídio de si mesmo”. Se o Não matarás permite exceções como as guerras, duelos, conflitos e as execuções capitais, onde as mortes são em número muito maior, por que o “homicídio de si mesmo” deveria ser continuar a ser condenado? Ele precisava entrar em outra categoria conceitual, fora do “homicídio”. Daí, “suicídio”.

Até hoje, em inglês, suicídio restringe-se a substantivo: “cometeu suicídio”. Em português, como no francês, espanhol e italiano, tornou-se verbo pronominal: “se suicidou”, o que pela etimologia seria “se se matou”, como se fosse outra pessoa agindo sobre ela mesma, acentuando filologicamente a “não-naturalidade” do ato. Por mais que lutemos para desmistificá-lo, a palavra “suicídio”, portanto, sempre guardará algo de estranho; ela traz na sua construção algo de inquietante.

Aprendemos com os linguistas que nomear alguma coisa é dar sentido à existência concreta dessa coisa, é atribuir-lhe realidade ontológica e empírica. Pode-se pensar “pela” palavra, “através” da palavra, a partir do momento em que ela existe. Quando é criada a palavra “suicídio” e “suicida”, e estes passam a ser nomeados como tais, tornam-se uma categoria de pensamento, uma possibilidade materializada de reflexão, denotando um amadurecimento da sociedade diante do tema.

Minois observa que o Renascimento e o século XVII serão importantíssimos para o início dos estudos sobre o suicídio, não para fazer defesa do ato, mas para compreender suas razões. O salto da ignorância para a racionalidade é nítido. O suicídio é um problema silencioso, que enche de surpresa, quando não de culpa, os que não puderam notar qualquer indício. Minois nos mostra, através dos grandes escritores que refletiram sobre o suicídio não suicidaram; falar sobre o suicídio, escrever, refletir, pode ajudar a exorcizá-lo. O silêncio talvez seja o maior erro. Refletir, conversar, pode ajudar a evitá-lo.

Apesar do pessimismo em relação à vida que marca a maioria dos filósofos, todos grandes escritores que abordaram de forma séria e profunda o tema, não cometeram o ato fatal: Shakespeare, Montaigne, Bacon, Charron, Donne, Burton. O séc. XVII tem a primeira grande constatação da falência da “política do avestruz”. Refletir não é fazer apologia, mas, ao contrário, pode significar o caminho do desfavor a uma ideia de aniquilar-se.

Com o antropocentrismo, a vida já não mais é propriedade divina. A liberdade torna-se um valor da mais densa reflexão. O ser humano não é mais obrigado a suportar as mazelas que o mundo lhe impõe em nome da provação ou da expiação dos pecados. Os exemplos catalogados por Minois mostram que a racionalidade incipiente ajudava a tentar compreender as circunstâncias e situações dos suicídios, e não condenar prévia e sumariamente.

O lento avanço da medicina, rompendo aos poucos as amarras religiosas, proporcionou a necessidade de se estudar melhor a loucura ou, ao menos, compreender ou questionar o limiar entre a “loucura” e a “normalidade”. Mas a condenação da loucura ajudou a restringir o debate sobre o suicídio: o desgosto de viver será considerado uma “irracionalidade” e, depois, uma doença.

A melancolia só começa a ser estudada e diagnosticada no século XVII, e ainda assim numa concepção puramente somática e fisiológica, uma espécie de desequilíbrio do corpo. Acreditava-se que era uma espécie de líquido, de “humor”, que contaminava as veias, uma bile negra (melancolia: melan - negro, cholie - fluido, humor), influenciada pelos astros, pela época do ano, levando à loucura. Eram indicadas terapias como transfusão de sangue, “os banhos, as viagens, a música” (173) para alegrar o espírito e afastar o “humor” melancólico. Apesar das causas da doença nos parecerem curiosas, pela primeira vez, no séc. XVII, a melancolia passava a ser encarada como doença, e não mais como falta de Deus no coração.

O autor destaca que essa secularização foi “um primeiro instrumento de dessacralização e descriminalização do suicídio, no qual poderão se basear mais tarde os defensores da tolerância”.

 

“A passagem da escolástica à razão analítica, do mundo fechado ao universo infinito, do humanismo à ciência moderna, do mundo das propriedades à linguagem matemática, da verdade imutável à dúvida sistemática, da certeza ao questionamento crítico, da unidade cristã à divisão entre confissões rivais, não pode ocorrer sem que o sistema de valores seja profundamente abalado”. 134

 

Tantas mudanças geram um ambiente de incertezas, instabilidades e desorientação. A morte voluntária aparece no horizonte de quem não conseguirá se adaptar a mudanças tão repentinas. Surge uma nova espécie de heroísmo conservador, de alguém que resguarda valores que não podem se perder.

O advento da imprensa proporcionou um interesse público e crescente pelo suicídio, sobretudo na Inglaterra. Minois reforça que, apesar da volatilidade e do fervor da opinião pública e dos vários casos relatados nos jornais, estatisticamente nada indica aumento relevante do número de casos.

Esse período de incertezas ajudou as autoridades a perpetuar o sentimento de mistério e origem diabólica do suicídio. A mistificação em torno do suicídio permanece como uma questão de poder político-econômico. A questão está em controlar a sociedade e tolher liberdades em nome do poder dependendo da classe à qual o indivíduo pertence. Minois não poupa ao desmoralizar as autoridades moralistas. Vale a pena o longo excerto:

 

“Responsáveis pela organização social, as autoridades são duplamente contrárias a qualquer legitimação do suicídio. Por um lado, ele ameaça todo o sistema, ao eliminar alguns de seus membros e semear a dúvida, a ansiedade e a contestação no interior de um corpo social perturbado. Por outro lado, o suicídio é uma acusação indireta contra os dirigentes sociopolíticos e religiosos. Ele é a prova de seu fracasso em assegurar a justiça e uma vida decente a todos os habitantes. Os suicídios despertam a má consciência e o remorso do corpo social, que não foi capaz de garantir a felicidade de seus membros e de consolar os necessitados. O suicídio é uma acusação dirigida contra a sociedade e seus dirigentes, pois quem se mata mostra que prefere o nada ou os riscos do além a um mundo que se tornou um inferno para ele. O suicídio é uma censura, uma acusação, até mesmo um insulto aos vivos e, sobretudo, aos responsáveis pela felicidade da coletividade.

É por essa razão que estes últimos não podem tolerar esse gesto, uma afronta a todos os sistemas políticos e religiosos. Quem prefere partir rumo ao desconhecido da morte mostra que não tem nenhuma confiança nas teorias, nas ideologias, nas crenças, nos projetos e nas promessas dos dirigentes de todos os quadrantes. Só resta a estes fazê-lo passar por louco, o que afasta qualquer responsabilidade: a dos suicidas, mas também, e talvez principalmente, a dos vivos. Até mesmo os sistemas mais liberais se recusam a admitir o suicídio, a tolerar a liberdade de expressão sobre o assunto. Os dirigentes religiosos e políticos do início do século XVII, que tentam retomar o controle cultural global em uma Europa perturbada por sua crise de consciência, não podem permitir que se desenvolva um debate sobre o suicídio. Deve-se aceitar a vida tal como ela se apresenta, e tal como os dirigentes a concebem. Para aqueles que se sentissem tentados a fugir, existe a repressão e os derivativos, como o suicídio espiritual. Submissão às autoridades no mundo, ou retiro espiritual para fora do mundo: essa é a escolha que o Grande Século oferece às almas melancólicas” 140-141

 

Individualmente, desejar a morte significava querer fugir do mundo, das determinações divinas. A nível coletivo, significa subverter radicalmente a ordem. Atitude intolerável. Minois expõe que em vários momentos uma ala intelectualizada do cristianismo católico hesitou, foi ambígua, mas isso não foi suficiente para alterar as sanções mais severas, que amedrontavam a maioria mais simples.

Em vários momentos a Igreja precisou escamotear o suicídio de seus membros do clero. O protestantismo ajudou a piorar a situação, relegando a Satã a vontade de atentar contra a própria vida. A única possibilidade de salvação para os mais pobres era alegar e constatar a loucura, o que até o séc. XVII não era nada fácil. Numa época em que a medicina mal existia, a sentença ficava à cargo dos testemunhos locais e à mercê de julgamentos arbitrários. Minois dá vários exemplos de julgamentos parciais.

 

“Depois de um processo verbal que descreve as circunstâncias nas quais o corpo foi encontrado, os cirurgiões fazem um relatório. Realiza-se, então, uma investigação sobre a vida e os hábitos do defunto, bem como sobre as causas prováveis do ato que provocou a morte. Depois é enviado um aviso aos parentes, e, se de fato houve suicídio, é nomeado um curador para assumir a defesa da vítima. Durante o julgamento, o corpo é mantido na areia, ou salgado, ou borrifado com cal viva, para evitar que ele se decomponha demais antes da execução. Uma vez pronunciada a sentença, o cadáver é recuperado, colocado sobre uma grade e arrastado com o rosto para baixo, e o cortejo é precedido por um oficial de justiça que anuncia o motivo da execução. O corpo é pendurado pelos pés em uma forca e, depois de ficar exposto, é jogado no monturo com os corpos apodrecidos dos cavalos. Para Despeisses, trata-se de medidas absolutamente adequadas contra aqueles que se entregam a “uma violência tão horrível e escandalosa”. 170

 

Durante todo esse século os moralistas e os casuístas vão oscilar entre a dúvida e o recrudescimento das leis que punem o suicida. No final do século há um endurecimento das leis. Segundo o autor, isso ocorre devido a um período de mudanças e incertezas, denotando mais o ímpeto das autoridades na tentativa de controle sobre a vida das pessoas. As ameaças e a dureza da pena, entretanto, não diminuem nem aumentam as estatísticas de suicídios, não impactam a decisão individual desesperada.

Por outro lado, as consistentes pesquisas e vivências médicas apontavam para a necessidade de se compreender a melancolia como uma forma de desrazão.

 

“Surge assim, aos poucos, a ideia de uma explicação médica, somática, das tendências suicidas, que atua no sentido da desresponsabilização daqueles que se matam, que seriam vítimas e não assassinos. Os autores divergem quanto à origem da doença, mas abandonam gradualmente as causas sobrenaturais e demoníacas da loucura e do suicídio” 173

 

Iniciam-se as internações dos loucos e dos suicidas para tratamento. A Igreja tenta caminhar absolvendo a alma do louco, entendendo que sua doença afeta apenas seu corpo. A jurisdição também caminha na direção de “excluir a ideia de responsabilidade moral e penal dos suicídios devidos à melancolia, ao mesmo tempo que mantêm a condenação de princípio contra o assassinato de si mesmo” 174. A legislação extremamente rígida, vai relaxando aos poucos no final do séc. XVII.

Algumas correntes cristãs, temerosas de mudanças radicais, vão preferir recorrer ao misticismo, à recusa ao mundo e mesmo à fantasia de aniquilamento. O ódio à vida e ao mundo continua presente nessas correntes, mas, paradoxalmente, os adeptos não desejam ultrapassar limiar da vida e da morte.

 

“São abundantes as declarações desse gênero nos textos religiosos do século XVII, que colocam a vida cristã ideal em um equilíbrio extremamente precário: o religioso odeia o mundo e a vida, anseia pela morte e pelo além ao mesmo que não se permite dar o passo fatal. Vivendo no mundo mas recusando todos os prazeres que ele pode lhe oferecer, ele parece um morto-vivo; ele deve se aproximar o máximo possível da morte, sem nunca abraçá-la. Na verdade, sua espiritualidade se baseia em um substituto da morte voluntária, em um verdadeiro suicídio espiritual: é a doutrina do “aniquilamento”, que encontramos em todos os místicos e religiosos famosos do início do século, cujos textos produzem efeitos às vezes inquietantes”.  202

 

Desejar aniquilar-se, mas jamais fazer isso; estar na corda bamba. Morrer para o mundo, desejar livrar-se dele isolando-se, uma catarse de serenidade, esperando uma vida melhor. Deve haver algum prazer nisso.

O debate amadurece com o Iluminismo e a necessidade de se pensar a estrutura legislativa dos Estados que, muito aos poucos, caminharão para uma atenção um pouco maior aos indivíduos.

A construção do Estado estará no centro das atenções do século XVIII. O suicídio de prisioneiros, por exemplo, será um motivo de dupla preocupação e particular incômodo. De um lado, a incapacidade do Estado em evitar que o crime fosse cometido; de outro, a impossibilidade de punir o criminoso. Não é a mesma sensação de descontentamento que se sente hoje, no Brasil, diante do crime de feminicídio seguido do suicídio do assassino? A sensação de impotência em punir o criminoso causa um profundo mal-estar na sociedade.

Dentro dos princípios Iluministas e no processo de construção de uma nova concepção de Estado Nacional, os suicídios não devem afetar o moral e a grandeza da nação, portanto devem ser evitados. Por isso, na falta de consistência do debate para a descriminalização, de maneira contínua opta-se frequentemente por endurecer as leis de punição aos suicidas. Para o autor, repressão moral ao suicídio e a injeção do medo de punições extremas não visa o bem-estar ou a preservação da vida, mas a manutenção do controle e do poder sobre ela por parte das autoridades político-religiosas. Na defesa de sua tese, o autor é mordaz:

 

“Aterrorizar os vivos para impedi-los de se matar: a que extremo chegaram os dirigentes sociais para obrigar as pessoas a continuar vivas! O fortalecimento dessa postura revela um profundo fracasso. Se a existência na Terra parece uma catástrofe insuportável para um número crescente de homens e mulheres é porque aqueles que estão encarregados de organizar essa existência são incompetentes. Mas, em vez de procurar melhorar as condições de vida aqui embaixo, pretende-se convencer as pessoas de que sua sorte será ainda pior se elas tentarem fugir. Cada um deve esperar pacientemente a ordem de liberação” 253-254

 

Minois mostra como é falha essa estratégia. A despeito da precariedade das estatísticas, observa-se que as curvas de suicídio não costumam se alterar muito, sendo razoavelmente estáveis, alterando-se em tempos e lugares diferentes, com alguns picos bem localizáveis e compreensíveis. As ameaças morais e religiosas e as punições públicas não impedem o ato do suicídio nem diminuem as estatísticas.

Os momentos de turbulências sociais alteram as curvas de suicídio. Por exemplo, as instabilidades políticas costumam aumentar o grau de incerteza, levando ao desespero. Por outro lado, as guerras acentuam o sentimento de solidariedade e atuam como uma válvula de escape, onde pessoa pode executar violência de maneira irrepreendida contra o inimigo, também resultando em um suicídio indireto. Como explica a seguir:

 

“Sabe-se que a taxa de suicídio diminui muito em tempo de guerra, quando a coesão reforçada do grupo, a solidariedade, a paixão e o desejo de vencer dão novamente sentido e atração à vida.

Uma das explicações psicológicas clássicas do suicídio é que, na maioria dos casos, o indivíduo volta contra si mesmo uma agressividade que ele não pode liberar contra os outros nas sociedades civilizadas” 11.

 

A virulência com que alguns soldados se lançam às batalhas mostra um desprendimento da vida bastante insuspeito. Ora, seria muita pureza no coração crer que determinadas lideranças político-religiosas não estão à espreita da utilidade dessa a essa dupla função imanente às guerras, aproveitando-se da potência humana contra si para direcioná-la aos inimigos.

Quando os filósofos do Iluminismo se impuseram, a ideia de liberdade passou a ser novamente considerada e até radicalizada; ademais, ao centrar seu debate sobre organização de uma nova jurisdição, os Iluministas colaboraram radicalmente para a descriminalização do suicídio.

O “direito de escolher” esteve no centro da questão da liberdade. Entre o “ser ou não ser”, o papel do Estado passa a ser questionado: é preciso que haja uma contrapartida ao cidadão; se essa contrapartida não existe, se o indivíduo permanece infeliz, é porque o Estado não foi capaz de proporcioná-lo uma vida satisfatória. A pergunta harmletiana permanece, “a grande maioria dos intelectuais escolhe ser. É preciso também que esse ser, que essa existência valha a pena ser vivida, o que está longe de ser o caso para um grande número de pessoas” 258.

Em nome da moral, da promessa de outro mundo em detrimento desse, e, por conseguinte, do controle da população, os dirigentes relutam:

 

“As autoridades, em especial as religiosas, avaliam que essa liberdade não pode existir. Porém, ao rejeitar tanto o que os partidários do ser como o que os partidários do não ser propõem, elas ficam em uma posição extremamente delicada. Tornar a permanência na Terra agradável demais é pôr fim à aspiração da salvação eterna no além, motor da moral; autorizar o ser humano a dispor de sua vida é contrariar o plano divino e eliminar as provações indispensáveis que nos permitem ganhar o Céu. Portanto, não existe alternativa, mas uma obrigação: ser infeliz na esperança de ser feliz. O melhor que o ser humano pode fazer aqui embaixo é administrar sua infelicidade passageira. Solução cada vez mais mal aceita por um século cujas aspirações se traduzem em uma adaptação da pergunta de Hamlet: ser feliz ou não ser.” 259

 

Lideranças morais que apregoam “ser infeliz na esperança de ser feliz” são incapazes de oferecer qualquer possibilidade de caminho digno para a existência humana.

O século XVIII assistiu a uma profusão de debates sobre o suicídio. Tratados contra a liberdade, inflados pelos religiosos. Tratados a favor a liberdade, incentivados pelos filósofos. Sobre esses últimos, Minois não tem dificuldades em mostrar que não há qualquer apologia irresponsável ao suicídio ou à desagregação social ou à corrupção dos costumes em suas reflexões. Os filósofos vão procurar compreender antes de condenar.

 

“A posição deles a respeito desse problema é variável e escapa a qualquer tentativa de sistematização. Aliás, eles se recusam a ser considerados defensores da morte voluntária. Se as pessoas se matam, dizem eles, não é por causa de argumentações filosóficas, é porque elas sofrem física ou mentalmente”. 273

 

Não há filósofo que tenha refletido sobre o suicídio no Iluminismo e que tenha feito a opção de tirar a própria vida. Voltaire, Diderot, Montesquieu, Favre debruçaram-se sobre o tema, mas não se suicidam. A recusa ao suicídio se dá pelo lado oposto ao da Igreja. Não por ódio à vida, mas por amor a ela.

 

Os filósofos iluministas amam demais a vida para imitar esse gesto desesperado. Mesmo Rousseau, tantas vezes miserabilista, não é atraído pela aventura. Confrontados com o dilema de Hamlet, os filósofos escolhem maciçamente “ser”. Eles não se decidem, de modo algum a morrer por ideias. O martírio e o sacrifício da vida são, na verdade, sinais de fanatismo que eles combatem. 274

 

A arte vai no mesmo sentido de radicalização: há centenas de suicídios nos romances, na poesia e nas peças teatrais. A reflexão sobre a felicidade e infelicidade do mundo e do ser humano está no centro do debate. Diderot questiona o sentido da procriação humana, de se colocar mais um rebento nesse vale de incertezas, dores e tormentos. Numa mistura de pessimismo reflexivo com sarcasmo extremo, temos uma reflexão primorosa de Diderot, bem ao seu estilo irônico:

 

“Nascer na imbecilidade, em meio à dor e aos gritos; ser o joguete da ignorância, do erro, da necessidade, das doenças, da maldade e das paixões; retornar passo a passo, à imbecilidade; do momento em que balbuciamos até o momento em que deliramos, viver entre patifes e charlatões de todo tipo, morrer entre um homem que lhe apalpa o pulso e outro que lhe perturba a cabeça; não saber de onde viemos, porque viemos e para onde vamos: eis aí o que chamamos de presente mais importante de nossos pais e da natureza: a vida”. 281

 

Os Iluministas posicionam-se abertamente pela descriminalização, mas não pelo suicídio. O suicida não prejudica mais a sociedade do que se continuasse um vivo inerte, ou melhor, um morto-vivo que odeia a vida. Se o indivíduo não contribui mais para a sociedade e/ou se a sociedade não pode lhe dar uma contrapartida, não há sentido em sua existência. A responsabilidade passa, aos poucos, para o Estado. A ideia de “contrato social” de Rousseau se torna absolutamente ampla e importante para esse debate. Montesquieu, por exemplo, entende que “se eu não me beneficio mais com esse contrato, tenho a liberdade de me retirar”. 283

O Iluminismo marca uma época de saída da repressão legal e tendências de reflexão moral. Voltaire, extremamente pessimista e sarcástico em relação à humanidade, não será entusiasta do suicídio. Sua arma é a ridicularização da censura dos jornais e da covardia da sociedade em debater o tema. “Para Voltaire muitos suicídios também estão relacionados à loucura, ao passo que outros revelam uma ‘doença’ que induz a pessoa a se matar por motivos injustificados” 289.

O suicídio não é mais uma afronta ou prejuízo a Deus nem à sociedade. É possível ver perfeitamente como o debate do suicídio acompanhou o lento amadurecimento em direção à laicização do Estado, como a iniquidade das leis penais do Antigo Regime é facilmente denunciada por Voltaire.

Voltaire percebe muito claramente, com D. Hauranne, que as autoridades pretenderam controlar a vida de quem tenta suicídio, mas não tem qualquer pudor ou valorização da vida quando se trata banalizá-la nas guerras: “a proibição de matar permite todas as exceções possíveis assim que os dirigentes das sociedades sentem a necessidade disso” 291.

Mas as opiniões de Voltaire não eram unanimidade. Pensadores como Mérian, por exemplo, entendem que não existe suicídio filosófico — ou seja, resultado de uma profunda reflexão —, sendo resultado de um absoluto desespero e da loucura. Para Mérian, então, as leis punitivas deveriam ser mantidas, ainda que em nome do sofrimento de uma família, a fim de garantir a sobrevivência da sociedade.

Outros vão questionar o valor da velhice. Se o Estado precisa garantir paz e felicidade aos cidadãos, como lidar com as incapacidades laborais trazidas pela idade? E, para o indivíduo, como lidar com decrepitude do próprio corpo?

A loucura e a melancolia no séc. XVIII, tal como no Renascimento, estavam bastante ligadas desequilíbrio. O desregramento deve ser evitado: “O excesso de estudo, o excesso de devoção e o excesso de meditação estão entre as principais causas da melancolia depressiva, por intermédio dos elementos líquidos do corpo” 301. O tratamento, portanto, estaria no âmbito do “reequilíbrio” do corpo: atividades que levassem o indivíduo a não se concentrar muito, viagens, banhos etc. A arte, sobretudo a literatura e o teatro, até por muitas vezes tematizarem o suicídio, deveriam ser evitadas pelos melancólicos.

Mas esse pensamento vai perdendo força entre os mais esclarecidos, que denunciam que a perseguição e o medo, provocado pelas classes religiosas, levavam ao suicídio mesmo de seus beatos. A melancolia passava a ser tratada, também, com cada vez menos misticismo e mais como uma doença a ser tratada.

Os filósofos, em geral, repudiam o martírio, o fanatismo religioso e a superstição:

 

“Suas discussões ajudaram, no entanto, a desculpabilizar e a banalizar a ideia de morte voluntária. Em primeiro lugar, ao afirmar que ela decorria essencialmente da loucura. Depois, ao pedir sua descriminalização. Todos estão de acordo sobre este aspecto: é intolerável, bárbaro e, no mínimo, absurdo, punir um cadáver e fazer que as verdadeiras sanções caiam sobre os inocentes” 306.

 

Já foi dito que as motivações das elites eram bem diferentes das classes populares ou, pelo menos, o fato de documentar seu sofrimento, suas motivações, ajudaram as classes mais ricas a transformar seu suicídio num evento. O acesso às letras e possibilitou tratá-lo quase como um ato de refinamento mental.

“A partir dos anos 1770, a juventude é seduzida pelos impulsos românticos: depois de Chatterton, em 1770, e Werther, em 1774, surge o suicídio por desespero amoroso, solidão, vazio da alma, desencanto com a vida, revolta diante da passagem rápida do tempo” 309.

O autor deixa claro, entretanto, que, apesar da popularização dos debates entre os jovens, não existe uma explosão das estatísticas. O que há é a abertura para a reflexão. Os intelectuais desejam entender o sentido da vida e de seus desencantos nas academias e nos salões nobres, mas “o suicídio de verdade sempre acontece nas casas simples e nas lojinhas, e isso por um motivo muito simples: o sofrimento” 310.

O ano é 1777, David Hume escreve um tratado em que entende que o suicídio não é uma afronta nem a Deus, nem a si mesmo nem à sociedade. Com medo de represálias, recolhe todas as cópias que estavam ao seu alcance e as destrói:

 

“Na consciência coletiva, o suicídio é um tabu tão importante como o incesto. Bater de frente com essa proibição é correr o risco de ser marginalizado pelas autoridades e por boa parcela da sociedade. Será que vale a pena correr todos esses riscos por uma obra com a qual a sua reputação não tem nada a ganhar? Hume, que não tem nada de dom Quixote, decide não combater os indestrutíveis moinhos de vento que são os preconceitos da consciência coletiva.” 314

 

Hume opta, portanto, pela destruição de todos os exemplares da obra. Por outro lado, o autor em momento algum se posicionará como um incentivador do ato. Uma coisa é a teoria, outra é a prática. Diante da ameaça de suicídio da Condessa de Boufflers, ele a escreverá repudiando o ato e a desaconselhando.

Minois relembra que a postura dos filósofos é de garantir a legitimidade do ato diante de uma vida desesperada, e não de uma condenação moral ou legal. D’Holbach, por exemplo, seguem a mesma linha de Hume. A lenta saída de uma vida essencialmente religiosa permitia entender o desespero como algo legítimo ou como doença crônica diante dos impasses da vida.

Minois mais uma vez volta seus interesses contra aqueles que se utilizam da moral para controlar a vida privada das pessoas e explorar o medo em nome do poder:

 

“Livros e mais livros de apologia do suicídio não provocação uma única morte suplementar se ninguém tiver bons motivos para se matar. Por outro lado, seria muito melhor se as pessoas aprendessem a não ter medo da morte. É na exploração desse sentimento que se baseiam todas as tiranias e todas as situações de injustiça. Só é livre quem não tem medo da morte” 318.

 

As estatísticas não sofrem grandes abalos nem com os tratados que apregoam a liberdade que circunda o ato nem com a criminalização hiper-proibitiva, que o condena sumariamente. O que ocorre é (a tentativa de) controle moral por parte das autoridades sobre a vida privada do indivíduo.

 

“Portanto, o instinto de preservação nos transforma em nossos próprios carcereiros, ao incutir em nós o medo de nossa própria libertação, a morte. A esse instinto, que é nosso mais fiel guardião, os dirigentes acrescentam o tabu do suicídio: ‘Ao proscrever a doutrina do suicídio, os reis e os padres quiseram assegurar a longevidade de nossa escravidão. Eles querem nos manter presos em uma masmorra sem saída’. Assim, mantidos vivos por nosso próprio instinto e pelos preconceitos sociais, precisamos ter muita coragem para ousar nos libertarmos antes do prazo, uma coragem auxiliada pelas circunstâncias” 319

 

A popularização da filosofia torna-se um “problema” para as reflexões morais. O tedio vitæ, o tédio vital, uma reflexão longa e demorada a respeito da falta de sentido da vida, e que teria como conclusão o auto aniquilamento como única saída, aconteceu pouquíssimas vezes. Meslier suicida, mas Minois o coloca como exceção à regra. O modelo cristão é que essa reflexão não chegasse ao ato extremo.

Em vários casos dos suicídios de aristocratas, a desilusão com a vida, manifesta em cartas de despedida, escondia os reais motivos: endividamento, ruína financeira, vergonha diante da sociedade, desonra, problemas com jogos... As razões “nobres”, advindas de uma reflexão profunda das cartas, na verdade omitiam os reais problemas. A justiça, nesses casos, não tinha problemas em sentenciar “loucura” para evitar a expropriação dos bens e prejudicar as famílias.

Para Minois, o suicídio filosófico é tão improvável quanto o romântico: “ninguém se mata por puro raciocínio; apenas uma máquina é capaz de se autodestruir ao cabo de uma avaliação. Ninguém tampouco se mata por um puro movimento passional, a não ser que se trate de uma simples loucura” 331.

A dor romântica estaria em alta nos finais do século XVIII. Que sentido teria a vida se a pena de viver teria superado o medo da morte? Mais uma vez Minois retoma o problema da proibição:

“A proibição de matar contém inúmeras exceções: por que o suicídio não seria uma delas, e a mais lógica de todas, já que se trata de minha própria vida? Será preciso esperar ser expulso da vida, decrépito, paralisado pelas dores, repugnante, desfigurado, desumanizado? Não é mais digno partir como um ser humano, enquanto a morte é desejável?”

Goethe, ao escrever Os sofrimentos do jovem Werther aos 25 anos, seria assim o resultado de um momento histórico, expressão de uma época em que a incomunicabilidade do amor só seria possível pelo gesto extremo da morte. “A sensualidade contida, a virtude, o destino implacável, a juventude e a morte: tudo que agitava as sensibilidades no final do Antigo Regime encontrava um coroamento e uma expressão poética e melancólica em Werther”

Vários são os casos de suicídio após a publicação e leitura do romance. Mas a proibição da tradução de livros em vários países mostra, talvez, o contrário. Não que o livro tenha dado causa a mais suicídios do que romances anteriores. O fato é que as autoridades estavam preocupadas com a popularização do tema e a necessidade de frear o debate público.

Goethe volta à carga com Fausto, em um suicídio filosófico, em que há uma absoluta desilusão com a pequenez humana, o desespero diante da própria fragilidade. Nas palavras de Goethe:

 

“No fundo do nosso coração, a inquietude vem fazer sua morada, e ali produz sentimentos profundos, e ali se agita sem parar, destruindo ali a alegria e a serenidade; ela se disfarça sempre com máscaras novas: ora uma casa, um pátio; ora uma mulher, uma criança; é também fogo, água, punhal e veneno! Trememos diante e tudo aquilo que não nos alcançará, e choramos sem parar por aquilo que não perdemos!” (apud Minois, 337).

 

Se a vida é um tormento ou um pesar, a morte voluntária passa a ser vista mais como libertação do que como aniquilamento. Segundo Minois, certamente Werther inspira mais que Fausto. Mesmo assim, ambos encontraram na França e na Inglaterra “concorrentes” inspiradores tanto nas artes quanto na vida. Entretanto, apesar da popularidade do tema entre os jovens, a taxa de suicídios continua sem sofrer grandes alterações. Outras motivações, como a recusa a envelhecer-se, são igualmente populares.

Entretanto, segundo Minois, a uma inspiração direta do suicídio é sempre o sofrimento, e não os motivos aparentemente racionais.

No início do séc. XIX viria o primeiro ensaio científico das motivações suicidas: “Reflexões sobre o suicídio”, de Madame de Staël, diferencia os suicídios “do romântico apaixonado, do filósofo pessimista e do criminoso arrependido”, e conclui que “Existe algo de sensível ou filosófico no ato de se matar que é absolutamente inacessível ao indivíduo depravado” 343. Há algo, portanto, de sublime, de nobre no suicídio, que evidentemente só a elite aristocrática poderia possuir. Mesmo assim, o livro de Staël marca a saída de defesas e acusações apaixonadas, do âmbito da moral, para análises mais racionais, na esfera sociológica.

Minois difere o suicídio das classes aristocráticas para as classes pobres:

 

“Entre a população humilde, a realidade cotidiana do suicídio é menos gloriosa e mais estável: as pessoas se matam há séculos pelos mesmos motivos — os sofrimentos básicos — sem fazer discurso. Mas esses suicídios não provocam alvoroço, pois não são motivados por ideias nobres nem correspondem aos cânones do heroísmo, além de serem cometidos de forma indigna: a forca [...]”

 

As condenações ainda são muito frequentes no final do séc. XVIII. “A miséria e a decadência física e moral continuam sendo as principais causas da morte voluntária entre a população rural” 349. O alcoolismo ajudou a acentuar o estado de fragilidade mental de algumas pessoas.  

As famílias pobres precisavam relatar sinais de loucura para se livrar das penalizações ou mesmo recorrer a métodos como simulação de um latrocínio, espancando o corpo mesmo depois de morto. Mesmo assim, nem todos escapavam. Minois descreve o caso de Christophe Caud, qual vale a pena reproduzirmos a sentença, que impressiona pela brutalidade da condenação no final do séc. XVIII:

 

“A sé, acolhendo as conclusões dos agentes reais, declarou que o morto Christophe Caud foi devidamente reconhecido culpado de ter se matado e assassinado a si mesmo por meio de uma gravata de musselina presa ao pescoço e, em seguida, a uma escada servindo de prancha embaixo de sua casa, para cuja reparação e o bem do interesse público ordena que sua memória seja apagada e suprimida para sempre, que seu cadáver seja preso em uma grade e arrastado pelas ruas e cruzamentos comuns e, em seguida, até a praça das liças para ser pendurado pelos pés e erguido na forca, permanecendo ali três horas e, em seguida, seja jogado no depósito de lixo; declara seus bens móveis adquiridos e confiscados em benefício de quem ele depende, seus custos processuais previamente abatidos deles, e, além disso, condenou a 3 libras de multa em benefício de Sua Majestade, a ser extraída de seus outros bens, além de condená-lo a arcar com as custas” 351-352

 

Ao final do Antigo Regime, portanto, ainda havia condenações, sobretudo entre as classes mais pobres. As penalizações diminuiriam de número e intensidade até 1789, quando a Revolução Francesa viria a mudar completamente a legislação. A secularização do assunto e da legislação ajudou bastante na desmistificação do suicídio, já não sendo mais obra do pecado ou do diabo.

O suicídio dos prisioneiros ainda continuava sendo implacavelmente condenável e passível de punição ao corpo. Como afirmamos anteriormente, denota a falência do Estado tanto em prevenir o crime como na sua incapacidade de puni-lo.

Na Inglaterra foi criada a primeira associação de tentativa de tratamento dos sobreviventes de tentativas de suicídio em 1774. A “Sociedade Humana” inicialmente era destinada ao salvamento de afogados. Como as tentativas de suicídio dessa maneira eram frequentes, logo ela mudou seus interesses, passando a agir no tratamento e prevenção de suicídios, tentando escutar as pessoas em situação de sensibilidade melancólica.

A popularização do tema faz crescer o debate entre os jovens. De acordo com o autor, o aumento do número de casos, inclusive entre jovens de menos de 14 anos, está mais relacionado a uma melhor especialização das estatísticas e da imprensa do que a um aumento efetivo do número de suicídios. “... a curva geral é estável, até mesmo declinante, mas a opinião pública, extremamente impressionada pelos anos difíceis, tira conclusões inquietantes” 357.

Os bilhetes suicidas dos jovens ajudam, por um lado, a conhecermos o cotidiano de trabalho extenuante, inclusive de muitos jovens que eram explorados por pais, parentes, empregados ou vendidos para outras famílias; por outro lado, ajudou a afastar os misticismos de quem atribuía o ato às tentações demoníacas:

 

“Na maioria das vezes, o bilhete suicida é uma maneira simples de se desculpar, mostrando que a pessoa foi induzida àquele gesto por um destino injusto. [...] Os bilhetes suicidas levam a cabo a secularização da morte voluntária, já que eliminam dela o papel do diabo, inserindo-a em uma lógica racional e humanamente explicável. O público se acostuma a ler essas cartas, a tomar conhecimento do suicídio como de um fato comum, um fait divers, e não mais como um ato criminoso. Afirmação do individualismo e da liberdade, como também um modo de influenciar a sociedade, o bilhete suicida é típico do espírito iluminista” 360.

 

Os jornais também são responsáveis por divulgar, com desprezo, suicídios de mulheres grávidas e abandonadas que preferem a morte à imagem de “desonra” social. Mesmo em casos de estupro, o suicídio é relatado com reserva na França. As mulheres que se matam por amor também não são levadas muito à sério, pois os suicídios por amor são reservados às classes nobres. Para as classes mais humildes, o amor, sentimento tão nobre, era considerado inacessível. Afastados da “nobreza do ato”, em alguns casos, duvidava-se que as pessoas mais simples pudessem amar a tal ponto que pudessem se matar. Para os mais pobres “os suicídios geralmente são tratados com escárnio: as histórias de amor nas choupanas não podem ser tão sérias como nos castelos”. 360-361.

O autor observa que a primavera (mês de maio na Europa) é onde o número de suicídios ascende. O número de noivados e de casamentos, a estação do Renascimento, faz crescer o sentimento de “desespero dos solitários, dos abandonados e dos marginalizados de todo tipo. Estação dos amores, a primavera é o tempo das grandes decepções, e também o tempo das doenças, que se abatem sobre os organismos fragilizados pelo inverno e pela quaresma” 362.

Além disso, a urbanização ajudou a enfraquecer os antigos vínculos rurais que estabilizavam as vidas das pessoas: a vida familiar, religiosa e as festas que davam coesão e estabilidade social se perdem na vida urbana, associada ao trabalho e à solidão.

A imprensa na Inglaterra tem um comportamento diferente da França. Os jornais ingleses noticiam com muito mais naturalidade e popularidade os suicídios, dando impressão de maior frequência. Na França, o assunto é mais restrito. A ideia de que a vida do súdito pertence ao rei leva a opinião pública a entender o suicídio como fracasso da coroa e do Estado, que não pôde assegurar o bem-estar dos súditos. O que colocava, inclusive, em xeque a ideia de infalibilidade do rei. Na França, o silêncio será uma imposição e censura sobre os jornais:

 

“O governo vai além, impondo silêncio em torno dos casos de suicídio: as gazetas são proibidas de falar das mortes voluntárias [...] Fim das execuções, sepultamentos discretos; o suicídio só é evocado à meia-voz. O suicídio não existe: a estratégia da avestruz instaura as condições ideais para a perpetuação e o fortalecimento do tabu” 366.

 

A imprensa inglesa tratava o tema com mais naturalidade, beirando a banalização. A censura era bem mais branda devido a uma ideia de menor pertencimento do súdito à coroa. Os jornais publicavam os bilhetes suicidas, os comentários dos leitores, popularizando o tema.

Entretanto, na Inglaterra a descriminalização viria depois da França. Há um consenso na França que, apesar de ser uma afronta a Deus, nem os suicidas nem suas famílias devem ser penalizados. A Revolução de 1789 daria o passo decisivo para a descriminalização.

No campo religioso e no campo militar perduram os pensamentos suicidas. Na religião cristã, as mortificações do corpo são substitutas para o suicídio direto, transformando o crente em um morto-vivo. Mas o autor deixa claro que essa mortificação, muito comum também entre os filósofos, não tem nada a ver com o ato direto de tirar ou não a vida. A reflexão, por mais pessimista, ajuda a afastar a ideia: “Esta é, talvez, uma das grandes lições, inesperada, do século XVIII: refletir sobre a morte, e até mesmo desejá-la, é renunciar a procura-la, pois significa desfrutar da essência da humanidade: pensar nela mesma e em seu fim” 374.

Ao contrário dos militares, que elevam as estatísticas das mortes voluntárias, seja pelo ato direto do suicídio, seja pelo suicídio indireto, de propensão a situações de evidente perigo, de proximidade com as armas, ou seja, ainda, pelos momentos de profunda depressão pelos quais passam os veteranos de guerra.

 

“As estatísticas do século XIX confirmam amplamente o índice bastante elevado de suicídio entre os militares. Em 1805, no campo de Boulogne, Napoleão tem de tomar providências, equiparando o suicídio à deserção. [...] Duas causas principais estão na origem desse fenômeno: os rigores do regulamento e da vida militar em geral, elementos de frustração e medo, quanto aos motivos; a convivência com a violência e a posse de uma arma de fogo, quanto aos meios.”375

 

O amadurecimento da reflexão, no séc. XIX, ajudou a localizar o suicídio primeiro no campo sociológico depois no campo psicológico. Há um consenso de que as punições são inócuas. Ele se torna um fato puramente humano e, por isso, passível de reflexão, e não de punição.

 

“A responsabilidade do indivíduo se dilui em um conjunto complexo e transforma o ‘criminoso’ em vítima: vítima de sua psicologia cerebral, vítima das desgraças que atingem seus familiares, vítima do comportamento dos mais próximos que contraria suas relações afetivas ou sua sensibilidade, vítima de uma organização política e social que conduz à miséria e ao desespero” 376

 

A descriminalização seguirá esse lento percurso, que precisará estruturar as bases morais antes de reestruturar a jurisprudência.

Na última parte do livro, Minois destaca que o século XIX seguirá um estranho retrocesso no debate. Por um lado, há a descriminalização, o que caracteriza um avanço; por outro, há o silêncio, quase um encerramento do debate no plano filosófico, que perdura até nossos dias.

Na construção do Estado tal como nós o conhecemos — dentro dos princípios de igualdade perante a lei — a Revolução de 1789 colaborou decisivamente para a descriminalização do corpo e das sanções sobre a família, mas a necessidade de punição dos condenados fez com que se impusessem algumas questões. [Até hoje, quando um detento entra em uma cela, lhe é solicitado que retire cintos, cadarços, objetos cortantes, quaisquer mecanismos que possibilitem atentar contra si mesmos].

 

“[...] O poder político, em nome da coesão social, não pode admitir o direito ao suicídio. O governo revolucionário não pode tolerar, em particular, o suicídio dos prisioneiros políticos, mesmo que estes últimos estejam condenados à morte. Decerto existe um aspecto fiscal nessa postura, já que, ao se matar, o acusado escapa da condenação e, portanto, do confisco de seus bens” 379

 

Dessa maneira, o autor descreve que, durante o processo revolucionário, vários guilhotinados, inclusive Robespierre, ou estavam quase mortos ou já estavam mortos. Havia uma importante necessidade simbólica de fazer com que a lei da execução fosse cumprida.

 

“Por meio da execução de cadáveres, o governo revolucionário retoma espontaneamente a prática do Antigo Regime, demonstrando de modo involuntário que o suicídio é a arma suprema da liberdade individual diante da tirania coletiva do Estado, seja ela qual for. Uma arma contra a qual todos os poderes e todas as leis são impotentes” 380.

 

Há uma profusão de suicídio políticos ao final da Revolução de 1789. Matar-se pela pátria, pela Revolução, por uma causa pela qual se acredita que valha a pena, o que Durkheim chamaria de suicídio altruísta. A imagem de Catão e Brutus são trazidas de volta. “Todos têm consciência de que estão retomando os exemplos ilustres dos romanos. O suicídio é, para eles, o refúgio do homem livre” 185.

Os suicídios nos períodos revolucionários, final do séc. XVIII e início do XIX, retomam a figura de Catão, inspirando-se em uma figura romana e em um suicídio patriótico; mas também se inspiram no suicídio pelo sentimento exacerbado de Werther. “Militares que cometem suicídio para não se render existem em todas as épocas. A Revolução, com seus voluntários imbuídos de entusiasmo patriótico, é pródiga em acontecimentos do gênero” 386.

A ideia de martirizar-se em nome de uma causa maior ou mesmo para resistir às transformações revolucionárias concerne às elites e lideranças políticas; se coloca ao lado da ideia da liberdade suprema, do ser humano livre para decidir seu próprio destino contra a tirania.

“Catão e Brutus fazem parte do universo cultural de inúmeros futuros chefes revolucionários, além de encarnar a vitória da liberdade suprema sobre os tiranos. Os estoicos, que forneceram tantos exemplos de suicídio político, também são muito admirados.” 388 Fazem uma “síntese entre o espírito filosófico e o espírito romântico” 388.

Para a população comum, os motivos continuam sendo os mesmos: a pobreza, sofrimento e o desespero. Apesar de os jornais serem alarmantes — devido ao próprio crescimento da imprensa — as estatísticas são estáveis. A primavera continua sendo o período mais propício, as mulheres se matam mais jovens (mais desesperadas) e os homens mais velhos (mais desiludidos).

“Um fato marcante é a imensa proporção de celibatários: dois terços do total, incluindo os divorciados. A solidão é um elemento determinante, mesmo para aqueles cuja família mora na mesma cidade; trata-se em geral de pessoas que caíram na miséria e deixaram de frequentar os parentes” 390

As famílias, ao relatarem as possíveis causas, tentam distanciar-se do fato, beirando a indiferença.

Mas o importante para Minois é constatar que a ausência das antigas proibições não alterou significativamente as estatísticas:

“Como acabamos de constatar, a interrupção de todas as formas de repressão não se traduz no aumento do índice de suicídio, prova de que a legislação não tem qualquer influência sobre a pessoa desesperada que decide se matar. Em compensação, os vivos que pertencem ao círculo mais próximo da vítima sentem sempre o mesmo mal-estar, uma mistura de pena com um vago sentimento de culpa, por não ter conseguido tornar suportável a existência de seu familiar ou amigo. O suicídio permanece um estigma tanto para a família como para a coletividade, que vivenciam a morte voluntária de um de seus membros como seu próprio fracasso. Aliás, ao atribuir ao suicídio causas sociais, os estudos sociológicos do século XIX vão reforçar esse sentimento de culpa e, em paralelo, o desejo de encobri-lo” 391.

O século XIX, segundo Minois, é marcado por uma mudança profunda. O suicídio deixa de ser uma expressão da liberdade e passa a ser tomado como um problema moral, social ou psiquiátrico. O resultado é a saída do suicídio do debate público — da descriminalização — para o âmbito privado e, por isso, muito mais silencioso. Assim, a “consciência individual” passa a ter um peso muito maior.

“Depois do interlúdio revolucionário, as autoridades morais, e até mesmo políticas, levadas pelo espírito de reação e de restauração, dedicaram-se a empurrar vigorosamente o suicídio para dentro do pacote de proibições de atos contra a natureza do qual, segundo elas, ele jamais deveria ter saído” 392.

“A psiquiatria e a sociologia põem em destaque a responsabilidade das fragilidades morais e mentais do indivíduo, bem como as deficiências e injustiças da estrutura social” 392

Jean-Claude Chesnais “[...] ressalta o aumento muito significativo dos índices, que seria uma decorrência dos efeitos desagregadores da Revolução Industrial: enfraquecimento dos vínculos tradicionais e da religião, emancipação do indivíduo, cujo isolamento é crescente, importância das oscilações econômicas e miséria operária [...]”

A Igreja, por outro lado, apesar da perda de poderes sobre a legislação (enfraquecimento do Direito Canônico), continuará condenando categoricamente, rejeitando os ritos fúnebres aos que tiram a própria vida.

Os avanços científicos não colaboram muito para o debate.

“A própria medicina ajuda a transformar o suicídio em uma ‘doença vergonhosa’. Desde o início do século XIX, as pesquisas do dr. Pinel vão nesse sentido. No Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental ou a mania, publicado no ano de IX (1801), ele relaciona a tendência suicida a uma fragilidade mental que o leva o indivíduo a exagerar os acontecimentos desagradáveis de sua vida” 396.

Dessa maneira, os tratamentos mais frequentes eram o eletrochoque, as duchas frias ou os medicamentos mais estremos. Baseados na ideia de que os métodos brandos não surtem grande efeito, o “choque” mudaria a percepção do doente. “O dr. Pinel percebe, portanto, que a repressão é a melhor maneira de curar as tendências suicidas. Passa-se da esfera médica para a esfera moral: ‘Instrumentos draconianos de repressão e um imponente sistema de terror devem secundar os outros efeitos do tratamento médico e do regime’ 396.

“A medicina do início do século XIX tende, assim, a culpabilizar a melancolia depressiva e a propensão ao suicídio utilizando o ‘tratamento moral’ baseado na punição, como se fosse uma perversão qualquer” 396.

O debate sai das ideias místicas medievais e passa a um debate estritamente moral. A liberdade, ou o excesso dela, passa para o plano das revisões em nome de um reequilíbrio. “A liberdade gera ao mesmo tempo incerteza e insegurança, causadoras do medo, da loucura e do suicídio.” 397

A liberdade total leva à perda de uma autoridade, o que seria fundamental para o equilíbrio do ser humano. Minois cita Esquirol: “O homem precisa de uma autoridade que controle suas paixões e governe suas ações. Entregue à sua própria fraqueza, ele se torna indiferente, depois inseguro; nada sustenta sua coragem, ele está desarmado contra os sofrimentos da vida, contra as angústias do coração” 399.

“Portanto, para onde quer que nos voltemos, o suicídio é um tabu que é preciso ainda envolver o silêncio. Afronta a Deus, depravação moral de uma pessoal que não respeita os valores estabelecidos, debilidade mental, tragédia ligada à anarquia libertária e ao materialismo, ou a um excesso de beatismo — em todo caso, doença da mente, da consciência e da sociedade —, o suicídio é reprimido juntamente com os todos os outros interditos sociais” 399.

Minois destaca que o folclore e as superstições não desaparecem do imaginário do senso comum, ajudando na perpetuação do misticismo: “[...] na Creuse, os suicidas são condenados a devolver eternamente as pedras para os leitos dos rios; na Polônia, eles viram assombrações e aterrorizam os vivos. Por toda parte, o folclore apresenta uma imagem muito negativa dos suicidas” 399.

Mas é impressionante que o debate tenha se retraído no século XIX.

 

“Desse modo, o século XIX anulou, em grande medida, o resultado das reflexões realizadas do Renascimento ao Iluminismo. O Renascimento apresentara a questão: ser ou não ser; o século XVII tentara abafá-la produzindo substitutos para ela, e o século XVIII tinha aberto o debate, que mostrara que o suicídio tinha motivos diversos. No século XIX o debate é encerrado: ser ou não ser é uma questão inconveniente, inoportuna e chocante. Portanto, silêncio. Sim, o suicídio existe, as estatísticas comprovam amplamente; porém, se é possível tentar explicar suas origens, legitimá-lo está fora de questão. O suicídio é uma doença mental, moral, física e social. Pelo menos quanto a isso as autoridades políticas, religiosas e morais estão de acordo”. 400

 

Parece-nos que, uma vez “resolvida” a questão legal e de como Estado deveria posicionar-se frente ao suicídio, há uma retração para o campo da moral religiosa e um abandono de uma visão da liberdade: “Fragilidade, covardia, loucura, perversão: o suicídio é tudo menos uma manifestação da liberdade humana, o que os mais audaciosos pensadores entre os séculos XVI e XVIII tinham procurado sugerir” 400

A nível coletivo, a recorrência dos mitos revela bastante sobre as sociedades. Por que Hamlet é tão importante e encenado até os dias de hoje? A questão que ele nos traz é latente e perene:

 

“Quanto mais escondemos os suicídios concretos, mais falamos do suicídio abstrato, um sinal de que a morte voluntária continua incomodando. A questão de Hamlet não para de renascer das cinzas. As ciências humanas e a medicina tentam explicar esse comportamento desconhecido e intrigante. O suicídio horroriza, ao mesmo tempo que continua sendo a solução definitiva ao alcance de todos, que nenhuma lei, nenhum poder consegue proibir” 400.

 

Na entrada do século XX, Minois entra rapidamente no campo da psicanálise, descrevendo o suicídio como uma revolta contra si mesmo, na impossibilidade do aniquilamento do(s) outro(s).

 

“A primeira teoria de Freud é ilustrada por esta frase de Flaubert a Louise Colet, em 1853: ‘Desejaríamos morrer, já que não podemos fazer que os outros morram, e todo suicídio talvez seja um assassinato reprimido’. Por essa ótica, o índice de suicídio tende a aumentar nas sociedades mais organizadas, naquelas em que a violência exterior é a mais regulamentada, e o índice de suicídio seria, então, inversamente proporcional ao índice de homicídio” 401

 

Quanto mais “civilizada” é uma sociedade, mais o indivíduo sente o peso das regras sobre seu corpo. Aí vale a máxima: a civilização não é garantia de felicidade.

Minois chega a citar o conceito de pulsão de morte mas, apesar da polêmica desse conceito, que não nos cabe explorar aqui, parece-nos que esse conceito tem uma abrangência bastante diferente, bem diferente da restrição do tema do suicídio.

Para o autor, a fragmentação social é particularmente um fator importante no aumento do índice dos suicídios. Isso aparece tanto nas suas descrições do crescimento dos burgos, na Idade Média, quanto na expansão desenfreada das metrópoles do século XX.

O processo civilizatório, com seus rigores morais, é determinante e o suicídio aparece como uma resposta possível:

 

“[...] algumas situações são particularmente favoráveis a um elevado índice de suicídio: a falta de integração a um grupo, o rigor excessivo do código moral, que multiplica as ocasiões de erro e de vergonha, os períodos de paz. Em compensação, é baixo o número de suicídios em período de guerra, que reforça a solidariedade e oferece uma razão para viver, entre as pessoas casadas, e em particular entre os católicos socialmente integrados à paróquia” 402.

 

Por outro lado, o individualismo proporcionado pelo capitalismo liberal pode ter sujeitado o indivíduo a ainda mais pressões pelo sucesso financeiro e pelo fracasso na carreira.

 

“Todas essas explicações que se completam mais do que se contradizem, ressaltam a complexidade desse ato. A decisão de pôr fim à vida resulta de inúmeros fatores, dos quais muitos independem da vontade, para não mencionar apenas, evidentemente, suicídios conscientes. No entanto, a escolha final continua sendo do indivíduo” 402.

 

Minois destaca que no século XX a reprovação permanecerá e o debate se limitará a condenar ou compreender, mas de maneira muito superficial e limitada às circunstâncias do momento da escolha.

 

“As contradições permanecem as mesmas: admiração pelos suicídios literários, pelos suicídios guerreiros de militares que se recusam a abandonar o posto, pelos suicídios de resistentes que engolem o cianureto para não falar sobre tortura e, ao mesmo tempo, condenação de todos os suicídios ordinários de infelizes cujos motivos não parecem suficientemente nobres” 402.

 

Isso se deve aos mecanismos de poder que, envernizando-se das pautas morais, eclipsaram o debate do tema do suicídio assim como de outros como eutanásia e, mais recente, a manipulação genética.

 

“Abafado desde o início do século XIX, o debate está ressurgindo por intermédio desses exemplos famosos. Ele assume também uma nova dimensão com o problema específico da eutanásia. Essas questões são importantes demais para serem escamoteadas e abafadas. A sociedade não vai conseguir escapar nem do debate sobre o suicídio e a eutanásia nem do debate sobre as manipulações genéticas, pela simples razão de que é seu próprio futuro que está em jogo” 403.

 

A questão central, para Minois, permanece nas autoridades que impossibilitam qualquer discussão para manter o controle da população: “Tanto hoje como no século XVIII, os responsáveis continuam silenciosos a respeito do problema do suicídio”. O importante é uma sociedade continue caminhando alegremente: “‘O suicida é um estraga prazeres’, observou por sua vez F. Zenati”

Como uma necessidade intrínseca ao problema da (in)existência, a questão hamletiana permanece: “Ser ou não ser”?

 

“Longe de incitar ao suicídio, essa pergunta estimula a mente humana a aprofundar o sentido da vida, com o risco de pôr em destaque o sentimento de absurdo. Não é esse risco que faz, em parte, a grandeza da humanidade? Mas o próprio absurdo da existência pode ser aceito: ‘Tiro, assim, do absurdo três consequências: minha revolta, minha liberdade e minha paixão’, escreveu Albert Camus. “Por meio unicamente de uma manobra da consciência, transformo em regra de vida o que era um convite à morte, e recurso o suicídio” 404-405.

 

Minois finaliza o texto com uma explanação sobre a história intelectual. Os momentos de “equilíbrio” — ainda que essa palavra implique uma série de problemas na ordem das classes sociais: qual equilíbrio? equilíbrio para quem? A que interessa essa estabilidade? — devem ser preservados para evitar as crises. É nos momentos de desestabilidades que os suicídios veem à tona e trazem consigo os debates existenciais que ele suscita.

 

“A alternativa entre “eu sei” e “que sei eu?” dita o ritmo da história intelectual. Nos períodos de equilíbrio e estabilidade, o pensamento aprofunda as respostas; nos períodos de crise, ele faz as perguntas. Na busca pela verdade, a mente humana passa das certezas à dúvida, causa de novas e ilusórias certezas. Se estas últimas são tranquilizadoras, as dúvidas são estimulantes. A alternância, aliás, não é rigorosa, e a luta é permanente. Durante os períodos de crise de consciência, o volume de dúvidas chega a abalar as certezas, que resistem e utilizam a força para abafar as perguntas.” 407

 

Em sua conclusão, Minois insiste na tese de que as autoridades tem papel importante e que quase sempre condenam o suicídio para garantir a estabilidade e, portanto, a ordem social:

 

“Pois os responsáveis e os dirigentes políticos e religiosos são contrários às dúvidas. Se governar é prever, também é saber. Não se dirige com dúvidas, mas com certezas. Em nome de quê se poderia regulamentar de outro modo a vida social? Como, em particular, será possível governar pessoas que nem mesmo tem a certeza de que devem continuar vivas? Que ascendência se terá sobre súditos ou cidadãos que têm toda a liberdade de morrer a seu bel-prazer? Como lhes inspirar confiança se alguns deles demonstram a cada dia sua desconfiança e seu desespero ao preferir a morte à vida?” 407.

 

Quando é praticado em nome do rei, do Estado, da Igreja ou simplesmente da ordem, o suicídio pode ser tolerado e até mesmo incentivado, conquanto que simbolize o reforço da “ordem social” e que garanta a manutenção dos poderes. Dessa maneira, as classes mais ricas sempre tiveram mais acesso a absolvição de seu ato pois sempre puderam, por meio de discursos ou cartas, justificar ou legitimar seu suicídio.

 

“O suicídio entre as elites, que diz respeito a um número limitado de indivíduos, obedece a convenções e a um ritual que sofre os efeitos da moda. As pessoas se matam com arma branca ou pistola, instrumentos nobres, e por causas nobres: honra, dívidas, amor. Esses suicídios, aliás, são em grande medida tolerados por autoridades indulgentes, pois não contestam a ordem social. A punição contra os cadáveres e contra os bens dos suicidas aristocráticos é rara. Os intelectuais, por sua vez, falam de suicídio, mas o cometem muito pouco, mesmo aqueles que são favoráveis à sua liberalização” 408.

 

No caso dos pobres a coisa se dá de maneira diferente. As punições tentavam garantir que, pelo medo, o indivíduo se desestimulasse dos pensamentos infames e “egoístas”. É claro que a situação de miséria não deveria ser considerada como, também, compreendida como penitência necessária para uma possível entrada no reino dos céus. Assim, o pobre não deveria se furtar às provações da vida, por mais pesadas que poderiam parecer.

 

“Como dissemos, a repressão contra esse suicídio comum e prosaico é feroz: cadáver arrastado sobre a grade, pendurado pelos pés, queimado ou jogado no depósito de lixo, ou, na Inglaterra, enterrado sob uma estrada importante com uma estaca enfincada no peito; o inferno é garantido e os bens confiscados. Diante dessa brutalidade judicial, a oposição aumenta nos séculos XVI e XVIII” 409.

 

O objetivo de Minois é mostrar a iniquidade da moral que aprova ou reprova o suicídio conforme lhe convém a preservação da ordem de poderes. Heroísmo para os ricos e poderosos. Para os pobres, a desonra que precisava ser escamoteada a todo custo.

“O suicídio de pessoas do povo, cometido quase sempre por enforcamento ou afogamento, é vivenciado como uma vergonha familiar, e procura-se, de modo sistemático, camuflá-lo como acidente ou atribuí-lo a um gesto de loucura. Aliás, o debate de ideias sobre o suicídio das elites leva as autoridades do século XVIII a reprimido com mais prudência e discrição” 409.

 

O autor finaliza apelando para a necessidade do debate.

 

“Apesar de tudo, é através do caso extremo da eutanásia que o problema reaparece nos dias de hoje, apesar das pressões das autoridades morais e políticas — aquelas teimando em afirmar que mesmo os sofrimentos extremos incuráveis têm um valor positivo, e estas temendo os descontroles. Devido a esses motivos, milhares de seres desumanizados por sofrimentos intoleráveis são condenados a viver. Na dramática transformação de valores a que assistimos, os debates, polarizados em todo na bioética, não deveriam também contemplar uma tanato-ética? 410.

 

 

------------------------------------------------

 

Post-scriptum:

 

Há um debate bastante raso mas também muito recorrente sobre a naturalidade ou não do ato do suicídio e de tantas outras ações humanas. Apesar de achar um tanto quanto desnecessário, deixo aqui uma modesta e descompromissada opinião e que mudará muito pouco os rumos da discussão. Mesmo assim, gostaria de argumentar bem rapidamente sobre isso de duas maneiras opostas.

1 — Como se define “o que é natural”? O ser-humano age de infinitas formas não-naturais. A partir do momento em que criamos ferramentas para vivermos melhor, que modificamos nosso ambiente, nos tornamos não-naturais. Não nascemos com nenhuma ferramenta: tacape, roupas, linguagem, escrita, celular... Aprendemos diariamente a criá-las, a recriá-las e a usá-las. O ser-humano só é ser-humano, portanto, por fazer coisas especificamente não-naturais. Oras, questionar o suicídio como algo “não natural” afeta, pois, muito pouco o debate.

2 — O argumento anterior pode ser invertido, com igual racionalidade. De forma natural é possível querer e efetivamente deixar de existir? Em outras palavras, um animal, diante do perigo inescapável e da morte certa, pode abreviar a angústia e o sofrimento? Sim. O escorpião, por exemplo, se auto-inocula o próprio veneno quando percebe que não conseguirá fugir de um círculo de fogo. Ou seja, há casos de outros animais, no campo estrito da “natureza”, que desatam a existência para evitar o martírio. Essa natureza também estaria no ser-humano?

 

--------------------------------------------------

Apenas para finalizar o texto, lembro que se a vida é uma dádiva e não um fardo, é preciso que a liberdade seja levada à sério. Para que seja uma dádiva, o ser-humano precisa ter a prerrogativa de recusar esse presente; do contrário, não é presente, e sim condenação. “Condenados a viver”, o autor diz em um momento do texto.

Minois, em sua tese, nos mostra que as atitudes das lideranças políticas, morais e religiosas, convictas ao condenar o suicídio, forçaram o indivíduo a permanecer vivo, condenaram-no a existir e, pior, falharam miseravelmente nessa tarefa, pois não evitaram e nem evitarão o suicídio.

Talvez a melhor maneira de diminuir as possibilidades de suicídio — e não de erradicá-lo, pois impossível — é, por um lado, lutando para que a existência humana seja menos dolorosa na terra e, por outro, justamente confiando ao ser-humano a liberdade e a responsabilidade que lhe cabem em sua existência individual e coletiva. É arriscado. Mas confiar na moralidade soberba das autoridades, como mostrou Minois, é um caminho evidentemente fracassado. Se desejamos a valorização da vida e se queremos que nossa existência tenha algum sentido, o risco que precisamos correr é a liberdade.

 

Arrivistas, bajuladores e embusteiros? Non, mèrci! Non, mèrci! NON, MÈRCI!!

(www.gallica.bnf.fr)      Cyrano de Bergerac poderia facilmente ser entitulado “O Penacho de Cyrano” se assim fosse da vontade de Edmo...