Quando estávamos no 2º Grau, hoje Ensino Médio, tínhamos um
amigo que tentou suicídio. No dia seguinte, o diretor proibiu todos os colegas
de sala de tocar no assunto “A última coisa que ele precisa nesse momento é de
perguntas!”, sentenciou. Silêncio absoluto. Todos com olhos arregalados. Não
sei se esse amigo, assaz tímido, tinha outros lugares onde pudesse conversar
sobre seus problemas. O silêncio se fez eco: dois anos depois ficamos sabendo
que ele havia se jogado da janela de um prédio.
Naquele momento, a política do avestruz se livrou de um
problema entre as paredes da escola, mas isso não impediu que nosso amigo se matasse
pouco depois. E isso diz muito do que são as escolas brasileiras, muito menos
preocupadas com os o estado emocional de seus alunos do que com os índices mercadológicos
de avaliação e aprovação. Os assuntos mais sensíveis da vida da criança e do
adolescente — a morte, a vida, as amizades, os afetos — devem ser evitados na
escola e ficar no âmbito da família e da religião.
Dentre os principais problemas
a serem enfrentados quando tratamos do aniquilamento de si mesmo um dos mais
importantes é censura da fala, da conversa. A questão é que, na ponta, ela
também proíbe a escuta. A cada Setembro Amarelo retorna a necessidade de
lidarmos melhor com esse problema mas, no geral, há uma covardia tácita e uma
série de tabus que assolam o debate logo no início.
George Minois nos mostra que quando o assunto é suicídio, as
atitudes típicas das autoridades nos pequenos e nos grandes espaços, são a negligência
e a desídia, envernizadas de toda sorte de pré-julgamentos moralistas. Ao
apregoar o silêncio, negligenciam o problema, mantendo o assunto no campo do
misticismo religioso e moralista; ao passar o problema adiante, terceirizam a
responsabilidade. Essa atitude, ou é um erro estratégico na condução do
problema, pois evidentemente não o evita; ou coroa a insensibilidade dos que
apenas estão preocupados em manter a ordem das coisas. Os dois motivos. Em
última instância, Minois mostra que, ao demonizar o suicídio e condená-lo ao
silêncio, as autoridades não estão preocupadas com a vida, mas sim com seus
projetos de poder. Talvez, se pudéssemos ter conversado com nosso amigo, ele
não teria se defenestrado.
Há vários percursos para desmistificar o suicídio, torná-lo
acessível, discutível e, quiçá, evitável. Minois percorre o caminho da história
das mentalidades e do materialismo histórico: compreender os meios materiais
que circundam o ato fatal e as redes de poder que sustentam o fenômeno social
na longa duração da história do suicídio. O autor nos propõe compreender,
então, o fenômeno em sua esfera político-econômica e jurídica. Expõe como a
hiper-criminalização do suicídio na Idade Média revela a estrutura de poder
social que, além de não conseguir impedir o ato, ainda respinga sua ignorância
nos nossos dias.
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Antes de entrar em A História do Suicídio — a sociedade ocidental diante da morte voluntária, duas críticas necessárias às pretensões do título: 1º. Recortar a “sociedade ocidental” em França, Inglaterra e um pouquinho da Alemanha — desprezando-se o resto da Europa, os nativos das Américas, os imigrantes europeus e a população africana, nativa ou escravizada nas Américas — seria amador para um historiador iniciante, uma falta de recorte, mas é um francês escrevendo... então ok, vamos lá, é “a” sociedade ocidental, ok. 2º. Igualmente, o título sugere um recorte temporal bem mais amplo, quando o livro, em sua densidade, apresenta o século XVI ao século XVIII. Ok, ok.
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Estudioso das mentalidades religiosas medievais, Minois começa
pelo século XIV, período mais tenso na repressão ao suicídio. O autor observa
que as origens da proibição datam da estruturação do cristianismo católico com
Santo Agostinho. Importante notar que o Direito Canônico, regido pela Igreja
Católica, era predominante e soberano sobre o Direito Civil.
As leis Canônicas condenavam particularmente os que ousavam
tirar a própria vida. A legislação era baseada no 6º mandamento, Não matarás:
por não especificar “quem”, pressupunha que a pessoa não pode atentar contra si
própria). Garantia sanções à família, confisco dos bens dos herdeiros e punição
implacável ao corpo. Estratégico, o autor nos chama atenção para a dupla
condenação aos suicidas: os corpos sofriam suplícios impiedosos, eram “executados”
publicamente em cerimônias cercadas de todo tipo de violência e superstição; já
suas almas, é claro, eram desciam de elevador para o inferno.
Minois destaca o ódio à vida e ao mundo biblicamente
referendado: “Aquele que ama a sua vida, a perderá; ao passo que aquele que
odeia a sua vida neste mundo, a conservará para a vida eterna.” João 12: 25.
Esse sentimento mantinha a vida social e religiosa no limite entre de desejo de
vida e desejo de morte.
“A lista de passagens do
Novo Testamento em que Paulo, Tiago, Pedro, Lucas e João exortam os fiéis a
odiar a vida terrena é interminável. O tema retorna sempre: a vida é
desprezível, é um exílio cuja duração devemos desejar que seja a mais curta
possível” 28.
O indivíduo deve odiar a vida, mas nunca a abreviar. Deve
suportar os sofrimentos com coragem e jamais se desesperar; deve expiar seus
pecados diante da confissão e das orientações do clero. O desespero é
imperdoável, pois contesta e descrê a função redentora da Santa Igreja e afronta
a possibilidade do milagre divino. O remédio para o desespero é a confissão e a
aceitação do pecador em continuar a viver para redimir-se através das
penitências.
Minois observa que as esferas político-religiosas se
con-fundem:
“Nas duas esferas, a proibição
do suicídio acompanha o recuo da liberdade humana: o homem perde o direito
fundamental de dispor de sua própria pessoa, em proveito da Igreja, que tem um
controle total sobre a vida da pessoa e retira sua força do número de fiéis, e
em proveito dos senhores, alguns dos quais são eclesiásticos, que precisam
conservar e aumentar sua mão de obra, em um mundo subpovoado no qual a fome e
as epidemias comprometem regularmente a valorização das propriedades.” 36
Assim, controlando e ameaçando o corpo e a alma, os poderes
político e religioso inocularam o medo nos fiéis. Uma das obras que mais
ajudaram a popularizar a imagem das trevas, A Divina Comédia (1472), de
Dante, no século XV, aloca os assassinos de si mesmos no Sétimo Círculo, um dos
mais profundos. Até hoje, muito da visão que temos do inferno é derivada dessa
obra. Os suicidas aparecem no Canto XIII:
Quando os laços do corpo uma alma ímpia
Destrói por si, do seu furor no enleio
Ao círc’lo sete Minos logo a envia.
Na selva tomba e aonde acaso veio,
E como o seu destino lhe consente,
Aí, qual grão germina de centeio,
Vai crescendo até ser árvore ingente:
As Hárpias, que a fronde lhe devoram,
Causam-lhe dor, que rompe em voz plangente.
Hemos de ir onde os corpos nossos moram,
Como as outras, mas sem que os revistamos,
Mor pena aos que em perdê-los prestes
foram.
Arrastados serão por nós: aos ramos
Pendentes ficarão nesta floresta
Nos troncos, em que, assim, vedes, penamos.
Imóveis, transformados em árvores secas e mortas, devorados perpetuamente
por Hárpias, esses infelizes compõem uma floresta de gemidos e lamentos terríveis.
Cena sensibilizou Gustave Doré (1861), que ilustra a capa do livro de Minois:
Numa época em que se questionava a liberdade e suas
limitações, é bastante emblemático que o inferno dos suicidas seja o inferno da
imobilidade. Estar preso ao chão e devorado lenta e eternamente por harpias.
Parece ser um aviso a quem um dia ousou dar-se a liberdade de tirar a própria vida.
Voltando para o mundo dos vivos, a primeira pena era a o
confisco dos bens, deixando a família culpada e desamparada, direcionando-os à
coroa e/ou aos senhores locais. Tal sanção visava fazer com que o indivíduo pensasse
duas vezes antes de atentar contra si mesmo, sob o risco de deixar os herdeiros
desamparados.
Em seguida, o suplício do corpo, que precisa mostrar que o
suicida inverteu a ordem das coisas. O caráter público do espetáculo grotesco
era mais importante que as punições em si, já que a ideia era dar o exemplo a
ser evitado. Minois descreve um caso entre tantos outros: após ser arrastado em
praça pública e re-enforcado por dias,
“... o cadáver será
colocado com o rosto virado para baixo, em um buraco com orientação norte-sul,
em vez da orientação normal oeste-leste, posição favorável à ressurreição, cujo
sinal virá do leste. A estaca atravessada no corpo também pode impedir a
ressurreição, e, em todo caso, não permitirá que o suicida venha incomodar os
vivos, enquanto o sepultamento em uma encruzilhada o fará hesitar, ao mesmo
tempo que impressionará os fiéis que se sentirem tentados a se matar. Em 1590,
o médico-legista da cidade de Londres chega mesmo a ordenar que a ponta da
estaca que serviu para pregar o cadáver de Amy Stoke seja exibida para servir
de exemplo. Outras vezes, o suicida é enterrado na parte norte do cemitério,
junto aos excomungados e aos não batizados, de todos aqueles que foram
excluídos da salvação eterna.” 91
Essa atitude de imobilizar o defunto ou, em outros casos,
decepar partes de seu corpo, mostra a inquietação dos vivos para com os mortos,
uma necessidade de se precaver de um morto possivelmente vingativo. Atitude
sintomática que revela, de um lado, a culpa dos vivos em não poder ter evitado
o ato, e daí o medo de que ele volte para atormentar os viventes; e, de outro,
de maneira inequívoca, o grau de primitivismo supersticioso que o cristianismo possui
e dissemina, alimentando o medo do sobrenatural.
Ora, qualquer debutante em legislação sabe que não se proíbe (com
veemência) aquilo que não se deseja (com igual intensidade). Se é prescrita tamanha
severidade de penas, é porque há uma forte razão de afastar da população esse
desejo: numa época em que as pestes e as guerras devastavam regiões inteiras, a
jurisdição revela o temor das autoridades em perder o controle sobre as
atitudes de liberdades individuais, ameaçando tanto mão de obra barata que
sustenta os estratos sociais quanto a ordem vigente.
Procurando construir uma “história do suicídio no ocidente”, Minois
retorna à Idade Antiga, para enfatizar que, para os gregos, os romanos, os
hebreus e os pagãos não há uma conclusão final, nem condenatória, nem
absolutória. A diversidade de casos, motivações e de contextos produzem uma
visão nada monolítica do suicídio, variando das avaliações mais generalizadas
às mais individualizadas. Entre os romanos, a forte referência dos estoicos,
seu sentimento de desprendimento e desapego em relação à vida, fazia os romanos
encararem o suicídio como o remédio acessível, solução racional de todos os
males da vida.
Mesmo no início do cristianismo católico, os posicionamentos eram
bastante ambíguos. Uma opinião condenatória mais unânime só seria estabelecida
com Santo Agostinho e a imposição da condenação se deu aos poucos a partir do
século V, nos lugares e épocas em que o interesse político-religioso passou a
oprimir as liberdades individuais.
O básico da argumentação condenatória segue a lógica da
hierarquia social: a alma humana pertence Deus assim como o corpo do servo
pertence ao Rei. Atentar contra si, portanto, é um duplo atentado à propriedade
dos senhores. O suicídio só será passível de absolvição se representa um
martírio político, morrendo em nome do rei ou um martírio religioso, morrendo
em nome da Igreja, motivações essencialmente das elites. Em casos de suicídio
aparentemente sem razão, que era o caso das classes mais pobres, era
sumariamente condenado.
Observemos, já de antemão, que os suicídios “heroicos”, em
nome de uma causa nobre, não alteram, pelo contrário, reforçam a ordem social.
O problema são os suicídios dos mais obres, que oferecem risco a essa ordem.
O autor começa a sustentar sua tese político-econômica ao
observar que, na Idade Média, os mais pobres estão muito mais sujeitos às punições
do que os mais ricos. Às classes nobres e eclesiásticas, suicídio poderia ser
facilmente substituído pelo martírio em prol da sociedade: os que possuem os
meios físicos para as batalhas e os meios de comunicação (escrita) para
sustentar essa narrativa. Assim, morrer pela espada, em nome do rei ou de uma
guerra santa, um duelo em nome da honra, suicídios em nome do amor, ou mesmo o
suicídio evidente, voluntário, mas por uma causa “nobre”, livravam as classes
aristocráticas de punições. As condenações mais duras — e essa é uma das teses
centrais do livro — não são isonômicas. Aos mais pobres, sobravam as formas de
se matar de maneira indigna, que não dependem de posses materiais: ou
afogamento ou enforcamento, e sem deixar qualquer explicação por escrito,
devido ao analfabetismo. No caso da forca, facilmente associada à imagem do
traidor Judas.
A abundância de documentos em relação aos grupos mais ricos e
a escassez nos grupos mais pobres revela o desprezo dos que podiam escrever os
relatórios e as estatísticas, ou seja, dos que dominavam a narrativa.
Aos mais abastados, a liberdade e a glória muitas vezes eram
sustentadas por cartas em que podiam justificar o heroísmo; geralmente iletradas,
as pessoas das classes camponesas não podiam explicar seus motivos, cercando o
suicídio de mistério, de atribuições ao diabo, o que conduzia a punições mais duras
e mais medo. A única salvação para as classes mais pobres era alegar loucura,
por onde a família tentava escapar das sanções políticas, religiosas e
supersticiosas. Mas os julgamentos eram muitas vezes tendenciosos, conforme os
interesses das autoridades locais em confiscar ou não os bens.
Mas é fundamental perceber que as ameaças severas, a tortura
do defunto, a confisco dos bens e mesmo a condenação prévia ao inferno não
surtem efeito na pessoa decidida a se matar. Esse é um ponto central para compreendermos
o suicídio. De acordo com o autor, a ameaça condenatória e o aumento da
severidade das penas nunca surtiram efeitos na diminuição ou aumento das
estatísticas de suicídios. Como convencer uma pessoa que o inferno é ruim se
ela já vive o próprio inferno na Terra? Uma pessoa que opta por aniquilar-se está
tão desesperada que a ameaça do inferno não lhe afeta muito.
Além disso:
“O uso exagerado do medo
na religião nascida da Reforma e da Contrarreforma leva a um resultado
contrário do previsto: tendo perdido a esperança de alcançar a salvação, alguns
espíritos frágeis ou que sofrem uma crise momentânea correm ao encontro da
morte. Já que a condenação eterna é certa, que importa o momento da partida?”
165
Na ausência de qualquer investigação médica ou psicológica
acerca do problema até final do século XVI, o suicídio era um problema a ser
tratado no âmbito moral-religioso. E aí, de acordo com o autor, não há freios
para a ignorância, o misticismo e as superstições. Qualquer semelhança com
nossos dias não é por acaso. Mas a tese de Minois é que essa limitação do
debate ao campo moral-religioso sempre foi um verniz mal disfarçado para os
interesses das autoridades em sua manutenção do poder.
Não por coincidência, portanto, o início da secularização e da
descriminalização do suicídio é contemporâneo ao Renascimento, à relativização
do poder da Igreja, à retomada e revalorização de suicídios greco-romanos e
pagãos (nem condenáveis nem perdoáveis) e ao avanço da medicina. O resultado é
fundamental: as primeiras contestações às origens místicas do suicídio dão
início a uma racionalidade mínima e à possibilidade de expressão e debate sobre
as origens das angústias humanas.
O Renascimento retomará dos gregos a ideia de liberdade em
desprender-se da vida no momento certo:
“Desde a época mais
remota, o pensamento grego formulou a questão fundamental do suicídio
filosófico. Os cirenaicos, os cínicos, os epicuristas e os estoicos reconhecem,
todos, o valor supremo do indivíduo, cuja liberdade reside na capacidade de
decidir ele mesmo a respeito de sua vida e de sua morte. Para eles, a vida só
merece ser conservada se for um bem, isto é, se estiver de acordo com a razão e
a dignidade humana, e se gerar mais satisfação do que sofrimento. Caso
contrário, é uma loucura preservá-la” 53
A postura não é de apologia ao suicídio, mas de compreensão do
valor da vida, de colocar-se como senhor de sua própria existência. Essa ideia
de “senhorio de si próprio” é absolutamente contestatória numa época em que se
acreditava em que a alma pertencia a Deus e o corpo ao rei. A saída do
teocentrismo para o antropocentrismo deu início ao processo de alforria do ser
humano a essas servidões.
São retomados os pensamentos de Sêneca, romano, na defesa de uma
saída racional e honrosa da vida, antes do envelhecimento, de suas vergonhas e de
seus sofrimentos. Para evitar o clima de fim-de-festa da velhice, é fundamental
saber retirar-se no momento certo: “é preciso estar muito bêbado para, depois
de beber o vinho, beber também a borra” 63. Os suicídios políticos são revalorizados
e os únicos condenáveis são os dos escravos e dos soldados.
O Renascimento também seria importante para trazer o suicídio
para a reflexão pela via das artes, da pintura, da literatura e, no caso do
teatro, para popularizar histórias de Gregos e Romanos entre a massa iletrada. Um
assunto-tabu, antes interdito e rodeado de superstições, agora poderia ser ao
menos levado ao palco. Gozando da liberdade artística, as artes puderam metaforizar,
relativizar e até sublimar o assunto antes sumariamente condenável. Através dos
personagens, o suicídio conseguia esgueirar-se e escapar da reprovação das
autoridades. “O romance permite apresentar livremente os problemas, e o simples
fato de apresentá-los equivale a contestar a moral tradicional” 127.
Aos poucos, a partir do séc. XVI, os tribunais começam a abrir
espaços para tolerâncias, compreensões e possíveis absolvições entre os limites
da loucura e da sabedoria. A ascensão da sociedade burguesa, do protestantismo,
do heliocentrismo e das cidades acentua o questionamento os valores tradicionais
até o limite do apocalipse, recrudescendo o individualismo, o isolamento e as
angústias.
É nesse âmbito de ensimesmamento, de dúvida entre continuar ou
não a caminhada da vida, que surge o mais famoso solilóquio do teatro, em
Hamlet (1600), de Shakespeare, na tradução de Machado de Assis:
“Ser ou não ser, eis a questão. Acaso
É mais nobre a cerviz curvar aos golpes
Da ultrajosa fortuna, ou já lutando
Extenso mar vencer de acerbos males?
Morrer, dormir, não mais. E um sono apenas,
Que as angústias extingue e à carne a
herança
Da nossa dor eternamente acaba,
Sim, cabe ao homem suspirar por ele.
Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe?
Ai, eis a dúvida. Ao perpétuo sono,
Quando o lodo mortal despido houvermos,
Que sonhos hão de vir? Pesá-lo cumpre.
Essa a razão que os lutuosos dias
Alonga do infortúnio. Quem do tempo
Sofrer quisera ultrajes e castigos,
Injúrias da opressão, baldões de orgulho,
Do mal prezado amor choradas mágoas,
Das leis a inércia, dos mandões a afronta,
E o vão desdém que de rasteiras almas
O paciente mérito recebe,
Quem, se na ponta da despida lâmina
Lhe acenara o descanso? Quem ao peso
De uma vida de enfados e misérias
Quereria gemer, se não sentira
Terror de alguma não sabida coisa
Que aguarda o homem para lá da morte,
Esse eterno país misterioso
Donde um viajor sequer há regressado?
Este só pensamento enleia o homem;
Este nos leva a suportar as dores
Já sabidas de nós, em vez de abrirmos
Caminho aos males que o futuro esconde;
E a todos acovarda a consciência.
Assim da reflexão à luz mortiça
A viva cor da decisão desmaia;
E o firme, essencial cometimento,
Que esta ideia abalou, desvia o curso,
Perde-se, até de ação perder o nome.”
Pela primeira vez o suicídio é visceralmente exposto em seu
momento de dúvida mais atemporal, humana e universal: diante de tantos
sofrimentos inevitáveis e irremediáveis do viver, deve-se cometer ou não o ato?
existir ou não existir? ser ou deixar de ser?
Aos poucos, vemos uma evolução no cuidado com a forma como se
tratava o suicídio. O ato era chamado até o séc. XVI de “homicídio de si
mesmo”, sendo, portanto: Não matarás. Quando o ato passa a ser chamado
de “suicídio”: sui (de si) — cædes (assassinato) na Inglaterra do
séc. XVII, demonstra mudança de concepção em relação ao Não matarás,
pois se torna uma outra categoria, se afastando do “homicídio de si mesmo”. Se
o Não matarás permite exceções como as guerras, duelos, conflitos e as
execuções capitais, onde as mortes são em número muito maior, por que o
“homicídio de si mesmo” deveria ser continuar a ser condenado? Ele precisava
entrar em outra categoria conceitual, fora do “homicídio”. Daí, “suicídio”.
Até hoje, em inglês, suicídio restringe-se a substantivo:
“cometeu suicídio”. Em português, como no francês, espanhol e italiano,
tornou-se verbo pronominal: “se suicidou”, o que pela etimologia seria “se se
matou”, como se fosse outra pessoa agindo sobre ela mesma, acentuando
filologicamente a “não-naturalidade” do ato. Por mais que lutemos para
desmistificá-lo, a palavra “suicídio”, portanto, sempre guardará algo de
estranho; ela traz na sua construção algo de inquietante.
Aprendemos com os linguistas que nomear alguma coisa é dar
sentido à existência concreta dessa coisa, é atribuir-lhe realidade ontológica
e empírica. Pode-se pensar “pela” palavra, “através” da palavra, a partir do
momento em que ela existe. Quando é criada a palavra “suicídio” e “suicida”, e
estes passam a ser nomeados como tais, tornam-se uma categoria de pensamento,
uma possibilidade materializada de reflexão, denotando um amadurecimento da
sociedade diante do tema.
Minois observa que o Renascimento e o século XVII serão
importantíssimos para o início dos estudos sobre o suicídio, não para fazer defesa
do ato, mas para compreender suas razões. O salto da ignorância para a
racionalidade é nítido. O suicídio é um problema silencioso, que enche de
surpresa, quando não de culpa, os que não puderam notar qualquer indício.
Minois nos mostra, através dos grandes escritores que refletiram sobre o
suicídio não suicidaram; falar sobre o suicídio, escrever, refletir, pode
ajudar a exorcizá-lo. O silêncio talvez seja o maior erro. Refletir, conversar,
pode ajudar a evitá-lo.
Apesar do pessimismo em relação à vida que marca a maioria dos
filósofos, todos grandes escritores que abordaram de forma séria e profunda o
tema, não cometeram o ato fatal: Shakespeare, Montaigne, Bacon, Charron, Donne,
Burton. O séc. XVII tem a primeira grande constatação da falência da “política
do avestruz”. Refletir não é fazer apologia, mas, ao contrário, pode significar
o caminho do desfavor a uma ideia de aniquilar-se.
Com o antropocentrismo, a vida já não mais é propriedade divina.
A liberdade torna-se um valor da mais densa reflexão. O ser humano não é mais
obrigado a suportar as mazelas que o mundo lhe impõe em nome da provação ou da
expiação dos pecados. Os exemplos catalogados por Minois mostram que a
racionalidade incipiente ajudava a tentar compreender as circunstâncias e
situações dos suicídios, e não condenar prévia e sumariamente.
O lento avanço da medicina, rompendo aos poucos as amarras
religiosas, proporcionou a necessidade de se estudar melhor a loucura ou, ao
menos, compreender ou questionar o limiar entre a “loucura” e a “normalidade”. Mas
a condenação da loucura ajudou a restringir o debate sobre o suicídio: o desgosto
de viver será considerado uma “irracionalidade” e, depois, uma doença.
A melancolia só começa a ser estudada e diagnosticada no
século XVII, e ainda assim numa concepção puramente somática e fisiológica, uma
espécie de desequilíbrio do corpo. Acreditava-se que era uma espécie de
líquido, de “humor”, que contaminava as veias, uma bile negra (melancolia: melan
- negro, cholie - fluido, humor), influenciada pelos astros, pela época
do ano, levando à loucura. Eram indicadas terapias como transfusão de sangue,
“os banhos, as viagens, a música” (173) para alegrar o espírito e afastar o
“humor” melancólico. Apesar das causas da doença nos parecerem curiosas, pela primeira
vez, no séc. XVII, a melancolia passava a ser encarada como doença, e não mais
como falta de Deus no coração.
O autor destaca que essa secularização foi “um primeiro
instrumento de dessacralização e descriminalização do suicídio, no qual poderão
se basear mais tarde os defensores da tolerância”.
“A passagem da escolástica
à razão analítica, do mundo fechado ao universo infinito, do humanismo à
ciência moderna, do mundo das propriedades à linguagem matemática, da verdade
imutável à dúvida sistemática, da certeza ao questionamento crítico, da unidade
cristã à divisão entre confissões rivais, não pode ocorrer sem que o sistema de
valores seja profundamente abalado”. 134
Tantas mudanças geram um ambiente de incertezas,
instabilidades e desorientação. A morte voluntária aparece no horizonte de quem
não conseguirá se adaptar a mudanças tão repentinas. Surge uma nova espécie de
heroísmo conservador, de alguém que resguarda valores que não podem se perder.
O advento da imprensa proporcionou um interesse público e
crescente pelo suicídio, sobretudo na Inglaterra. Minois reforça que, apesar da
volatilidade e do fervor da opinião pública e dos vários casos relatados nos
jornais, estatisticamente nada indica aumento relevante do número de casos.
Esse período de incertezas ajudou as autoridades a perpetuar o
sentimento de mistério e origem diabólica do suicídio. A mistificação em torno
do suicídio permanece como uma questão de poder político-econômico. A questão
está em controlar a sociedade e tolher liberdades em nome do poder dependendo
da classe à qual o indivíduo pertence. Minois não poupa ao desmoralizar as
autoridades moralistas. Vale a pena o longo excerto:
“Responsáveis pela
organização social, as autoridades são duplamente contrárias a qualquer
legitimação do suicídio. Por um lado, ele ameaça todo o sistema, ao eliminar
alguns de seus membros e semear a dúvida, a ansiedade e a contestação no
interior de um corpo social perturbado. Por outro lado, o suicídio é uma
acusação indireta contra os dirigentes sociopolíticos e religiosos. Ele é a
prova de seu fracasso em assegurar a justiça e uma vida decente a todos os
habitantes. Os suicídios despertam a má consciência e o remorso do corpo
social, que não foi capaz de garantir a felicidade de seus membros e de
consolar os necessitados. O suicídio é uma acusação dirigida contra a sociedade
e seus dirigentes, pois quem se mata mostra que prefere o nada ou os riscos do
além a um mundo que se tornou um inferno para ele. O suicídio é uma censura,
uma acusação, até mesmo um insulto aos vivos e, sobretudo, aos responsáveis
pela felicidade da coletividade.
É por essa razão que estes
últimos não podem tolerar esse gesto, uma afronta a todos os sistemas políticos
e religiosos. Quem prefere partir rumo ao desconhecido da morte mostra que não
tem nenhuma confiança nas teorias, nas ideologias, nas crenças, nos projetos e
nas promessas dos dirigentes de todos os quadrantes. Só resta a estes fazê-lo
passar por louco, o que afasta qualquer responsabilidade: a dos suicidas, mas
também, e talvez principalmente, a dos vivos. Até mesmo os sistemas mais
liberais se recusam a admitir o suicídio, a tolerar a liberdade de expressão
sobre o assunto. Os dirigentes religiosos e políticos do início do século XVII,
que tentam retomar o controle cultural global em uma Europa perturbada por sua
crise de consciência, não podem permitir que se desenvolva um debate sobre o suicídio.
Deve-se aceitar a vida tal como ela se apresenta, e tal como os dirigentes a
concebem. Para aqueles que se sentissem tentados a fugir, existe a repressão e
os derivativos, como o suicídio espiritual. Submissão às autoridades no mundo,
ou retiro espiritual para fora do mundo: essa é a escolha que o Grande Século
oferece às almas melancólicas” 140-141
Individualmente, desejar a morte significava querer fugir do
mundo, das determinações divinas. A nível coletivo, significa subverter
radicalmente a ordem. Atitude intolerável. Minois expõe que em vários momentos
uma ala intelectualizada do cristianismo católico hesitou, foi ambígua, mas
isso não foi suficiente para alterar as sanções mais severas, que amedrontavam
a maioria mais simples.
Em vários momentos a Igreja precisou escamotear o suicídio de
seus membros do clero. O protestantismo ajudou a piorar a situação, relegando a
Satã a vontade de atentar contra a própria vida. A única possibilidade de
salvação para os mais pobres era alegar e constatar a loucura, o que até o séc.
XVII não era nada fácil. Numa época em que a medicina mal existia, a sentença
ficava à cargo dos testemunhos locais e à mercê de julgamentos arbitrários.
Minois dá vários exemplos de julgamentos parciais.
“Depois de um processo
verbal que descreve as circunstâncias nas quais o corpo foi encontrado, os
cirurgiões fazem um relatório. Realiza-se, então, uma investigação sobre a vida
e os hábitos do defunto, bem como sobre as causas prováveis do ato que provocou
a morte. Depois é enviado um aviso aos parentes, e, se de fato houve suicídio,
é nomeado um curador para assumir a defesa da vítima. Durante o julgamento, o
corpo é mantido na areia, ou salgado, ou borrifado com cal viva, para evitar
que ele se decomponha demais antes da execução. Uma vez pronunciada a sentença,
o cadáver é recuperado, colocado sobre uma grade e arrastado com o rosto para
baixo, e o cortejo é precedido por um oficial de justiça que anuncia o motivo
da execução. O corpo é pendurado pelos pés em uma forca e, depois de ficar
exposto, é jogado no monturo com os corpos apodrecidos dos cavalos. Para
Despeisses, trata-se de medidas absolutamente adequadas contra aqueles que se
entregam a “uma violência tão horrível e escandalosa”. 170
Durante todo esse século os moralistas e os casuístas vão
oscilar entre a dúvida e o recrudescimento das leis que punem o suicida. No
final do século há um endurecimento das leis. Segundo o autor, isso ocorre devido
a um período de mudanças e incertezas, denotando mais o ímpeto das autoridades
na tentativa de controle sobre a vida das pessoas. As ameaças e a dureza da
pena, entretanto, não diminuem nem aumentam as estatísticas de suicídios, não
impactam a decisão individual desesperada.
Por outro lado, as consistentes pesquisas e vivências médicas
apontavam para a necessidade de se compreender a melancolia como uma forma de
desrazão.
“Surge assim, aos poucos,
a ideia de uma explicação médica, somática, das tendências suicidas, que atua
no sentido da desresponsabilização daqueles que se matam, que seriam vítimas e
não assassinos. Os autores divergem quanto à origem da doença, mas abandonam
gradualmente as causas sobrenaturais e demoníacas da loucura e do suicídio” 173
Iniciam-se as internações dos loucos e dos suicidas para
tratamento. A Igreja tenta caminhar absolvendo a alma do louco, entendendo que
sua doença afeta apenas seu corpo. A jurisdição também caminha na direção de “excluir
a ideia de responsabilidade moral e penal dos suicídios devidos à melancolia,
ao mesmo tempo que mantêm a condenação de princípio contra o assassinato de si
mesmo” 174. A legislação extremamente rígida, vai relaxando aos poucos no final
do séc. XVII.
Algumas correntes cristãs, temerosas de mudanças radicais, vão
preferir recorrer ao misticismo, à recusa ao mundo e mesmo à fantasia de
aniquilamento. O ódio à vida e ao mundo continua presente nessas correntes, mas,
paradoxalmente, os adeptos não desejam ultrapassar limiar da vida e da morte.
“São abundantes as
declarações desse gênero nos textos religiosos do século XVII, que colocam a
vida cristã ideal em um equilíbrio extremamente precário: o religioso odeia o
mundo e a vida, anseia pela morte e pelo além ao mesmo que não se permite dar o
passo fatal. Vivendo no mundo mas recusando todos os prazeres que ele pode lhe
oferecer, ele parece um morto-vivo; ele deve se aproximar o máximo possível da
morte, sem nunca abraçá-la. Na verdade, sua espiritualidade se baseia em um
substituto da morte voluntária, em um verdadeiro suicídio espiritual: é a
doutrina do “aniquilamento”, que encontramos em todos os místicos e religiosos
famosos do início do século, cujos textos produzem efeitos às vezes
inquietantes”. 202
Desejar aniquilar-se, mas jamais fazer isso; estar na corda
bamba. Morrer para o mundo, desejar livrar-se dele isolando-se, uma catarse de
serenidade, esperando uma vida melhor. Deve haver algum prazer nisso.
O debate amadurece com o Iluminismo e a necessidade de se pensar
a estrutura legislativa dos Estados que, muito aos poucos, caminharão para uma
atenção um pouco maior aos indivíduos.
A construção do Estado estará no centro das atenções do século
XVIII. O suicídio de prisioneiros, por exemplo, será um motivo de dupla preocupação
e particular incômodo. De um lado, a incapacidade do Estado em evitar que o
crime fosse cometido; de outro, a impossibilidade de punir o criminoso. Não é a
mesma sensação de descontentamento que se sente hoje, no Brasil, diante do
crime de feminicídio seguido do suicídio do assassino? A sensação de impotência
em punir o criminoso causa um profundo mal-estar na sociedade.
Dentro dos princípios Iluministas e no processo de construção
de uma nova concepção de Estado Nacional, os suicídios não devem afetar o moral
e a grandeza da nação, portanto devem ser evitados. Por isso, na falta de
consistência do debate para a descriminalização, de maneira contínua opta-se
frequentemente por endurecer as leis de punição aos suicidas. Para o autor,
repressão moral ao suicídio e a injeção do medo de punições extremas não visa o
bem-estar ou a preservação da vida, mas a manutenção do controle e do poder
sobre ela por parte das autoridades político-religiosas. Na defesa de sua tese,
o autor é mordaz:
“Aterrorizar os vivos para
impedi-los de se matar: a que extremo chegaram os dirigentes sociais para
obrigar as pessoas a continuar vivas! O fortalecimento dessa postura revela um
profundo fracasso. Se a existência na Terra parece uma catástrofe insuportável
para um número crescente de homens e mulheres é porque aqueles que estão
encarregados de organizar essa existência são incompetentes. Mas, em vez de
procurar melhorar as condições de vida aqui embaixo, pretende-se convencer as
pessoas de que sua sorte será ainda pior se elas tentarem fugir. Cada um deve
esperar pacientemente a ordem de liberação” 253-254
Minois mostra como é falha essa estratégia. A despeito da
precariedade das estatísticas, observa-se que as curvas de suicídio não
costumam se alterar muito, sendo razoavelmente estáveis, alterando-se em tempos
e lugares diferentes, com alguns picos bem localizáveis e compreensíveis. As
ameaças morais e religiosas e as punições públicas não impedem o ato do
suicídio nem diminuem as estatísticas.
Os momentos de turbulências sociais alteram as curvas de
suicídio. Por exemplo, as instabilidades políticas costumam aumentar o grau de
incerteza, levando ao desespero. Por outro lado, as guerras acentuam o
sentimento de solidariedade e atuam como uma válvula de escape, onde pessoa
pode executar violência de maneira irrepreendida contra o inimigo, também
resultando em um suicídio indireto. Como explica a seguir:
“Sabe-se que a taxa de
suicídio diminui muito em tempo de guerra, quando a coesão reforçada do grupo,
a solidariedade, a paixão e o desejo de vencer dão novamente sentido e atração
à vida.
Uma das explicações
psicológicas clássicas do suicídio é que, na maioria dos casos, o indivíduo
volta contra si mesmo uma agressividade que ele não pode liberar contra os
outros nas sociedades civilizadas” 11.
A virulência com que alguns soldados se lançam às batalhas
mostra um desprendimento da vida bastante insuspeito. Ora, seria muita pureza
no coração crer que determinadas lideranças político-religiosas não estão à
espreita da utilidade dessa a essa dupla função imanente às guerras, aproveitando-se
da potência humana contra si para direcioná-la aos inimigos.
Quando os filósofos do Iluminismo se impuseram, a ideia de
liberdade passou a ser novamente considerada e até radicalizada; ademais, ao
centrar seu debate sobre organização de uma nova jurisdição, os Iluministas
colaboraram radicalmente para a descriminalização do suicídio.
O “direito de escolher” esteve no centro da questão da
liberdade. Entre o “ser ou não ser”, o papel do Estado passa a ser questionado:
é preciso que haja uma contrapartida ao cidadão; se essa contrapartida não
existe, se o indivíduo permanece infeliz, é porque o Estado não foi capaz de
proporcioná-lo uma vida satisfatória. A pergunta harmletiana permanece, “a
grande maioria dos intelectuais escolhe ser. É preciso também que esse ser, que
essa existência valha a pena ser vivida, o que está longe de ser o caso para um
grande número de pessoas” 258.
Em nome da moral, da promessa de outro mundo em detrimento desse,
e, por conseguinte, do controle da população, os dirigentes relutam:
“As autoridades, em
especial as religiosas, avaliam que essa liberdade não pode existir. Porém, ao
rejeitar tanto o que os partidários do ser como o que os partidários do não ser
propõem, elas ficam em uma posição extremamente delicada. Tornar a permanência
na Terra agradável demais é pôr fim à aspiração da salvação eterna no além,
motor da moral; autorizar o ser humano a dispor de sua vida é contrariar o
plano divino e eliminar as provações indispensáveis que nos permitem ganhar o
Céu. Portanto, não existe alternativa, mas uma obrigação: ser infeliz na
esperança de ser feliz. O melhor que o ser humano pode fazer aqui embaixo é
administrar sua infelicidade passageira. Solução cada vez mais mal aceita por
um século cujas aspirações se traduzem em uma adaptação da pergunta de Hamlet:
ser feliz ou não ser.” 259
Lideranças morais que apregoam “ser infeliz na esperança de
ser feliz” são incapazes de oferecer qualquer possibilidade de caminho digno
para a existência humana.
O século XVIII assistiu a uma profusão de debates sobre o
suicídio. Tratados contra a liberdade, inflados pelos religiosos. Tratados a
favor a liberdade, incentivados pelos filósofos. Sobre esses últimos, Minois
não tem dificuldades em mostrar que não há qualquer apologia irresponsável ao
suicídio ou à desagregação social ou à corrupção dos costumes em suas
reflexões. Os filósofos vão procurar compreender antes de condenar.
“A posição deles a
respeito desse problema é variável e escapa a qualquer tentativa de
sistematização. Aliás, eles se recusam a ser considerados defensores da morte
voluntária. Se as pessoas se matam, dizem eles, não é por causa de argumentações
filosóficas, é porque elas sofrem física ou mentalmente”. 273
Não há filósofo que tenha refletido sobre o suicídio no
Iluminismo e que tenha feito a opção de tirar a própria vida. Voltaire,
Diderot, Montesquieu, Favre debruçaram-se sobre o tema, mas não se suicidam. A recusa
ao suicídio se dá pelo lado oposto ao da Igreja. Não por ódio à vida, mas por
amor a ela.
Os filósofos iluministas
amam demais a vida para imitar esse gesto desesperado. Mesmo Rousseau, tantas
vezes miserabilista, não é atraído pela aventura. Confrontados com o dilema de
Hamlet, os filósofos escolhem maciçamente “ser”. Eles não se decidem, de modo
algum a morrer por ideias. O martírio e o sacrifício da vida são, na verdade,
sinais de fanatismo que eles combatem. 274
A arte vai no mesmo sentido de radicalização: há centenas de
suicídios nos romances, na poesia e nas peças teatrais. A reflexão sobre a
felicidade e infelicidade do mundo e do ser humano está no centro do debate.
Diderot questiona o sentido da procriação humana, de se colocar mais um rebento
nesse vale de incertezas, dores e tormentos. Numa mistura de pessimismo
reflexivo com sarcasmo extremo, temos uma reflexão primorosa de Diderot, bem ao
seu estilo irônico:
“Nascer na imbecilidade,
em meio à dor e aos gritos; ser o joguete da ignorância, do erro, da
necessidade, das doenças, da maldade e das paixões; retornar passo a passo, à
imbecilidade; do momento em que balbuciamos até o momento em que deliramos,
viver entre patifes e charlatões de todo tipo, morrer entre um homem que lhe
apalpa o pulso e outro que lhe perturba a cabeça; não saber de onde viemos,
porque viemos e para onde vamos: eis aí o que chamamos de presente mais
importante de nossos pais e da natureza: a vida”. 281
Os Iluministas posicionam-se abertamente pela descriminalização,
mas não pelo suicídio. O suicida não prejudica mais a sociedade do que se
continuasse um vivo inerte, ou melhor, um morto-vivo que odeia a vida. Se o
indivíduo não contribui mais para a sociedade e/ou se a sociedade não pode lhe
dar uma contrapartida, não há sentido em sua existência. A responsabilidade
passa, aos poucos, para o Estado. A ideia de “contrato social” de Rousseau se
torna absolutamente ampla e importante para esse debate. Montesquieu, por
exemplo, entende que “se eu não me beneficio mais com esse contrato, tenho a
liberdade de me retirar”. 283
O Iluminismo marca uma época de saída da repressão legal e
tendências de reflexão moral. Voltaire, extremamente pessimista e sarcástico em
relação à humanidade, não será entusiasta do suicídio. Sua arma é a
ridicularização da censura dos jornais e da covardia da sociedade em debater o
tema. “Para Voltaire muitos suicídios também estão relacionados à loucura, ao
passo que outros revelam uma ‘doença’ que induz a pessoa a se matar por motivos
injustificados” 289.
O suicídio não é mais uma afronta ou prejuízo a Deus nem à
sociedade. É possível ver perfeitamente como o debate do suicídio acompanhou o
lento amadurecimento em direção à laicização do Estado, como a iniquidade das
leis penais do Antigo Regime é facilmente denunciada por Voltaire.
Voltaire percebe muito claramente, com D. Hauranne, que as
autoridades pretenderam controlar a vida de quem tenta suicídio, mas não tem
qualquer pudor ou valorização da vida quando se trata banalizá-la nas guerras:
“a proibição de matar permite todas as exceções possíveis assim que os
dirigentes das sociedades sentem a necessidade disso” 291.
Mas as opiniões de Voltaire não eram unanimidade. Pensadores
como Mérian, por exemplo, entendem que não existe suicídio filosófico — ou
seja, resultado de uma profunda reflexão —, sendo resultado de um absoluto
desespero e da loucura. Para Mérian, então, as leis punitivas deveriam ser
mantidas, ainda que em nome do sofrimento de uma família, a fim de garantir a
sobrevivência da sociedade.
Outros vão questionar o valor da velhice. Se o Estado precisa
garantir paz e felicidade aos cidadãos, como lidar com as incapacidades
laborais trazidas pela idade? E, para o indivíduo, como lidar com decrepitude
do próprio corpo?
A loucura e a melancolia no séc. XVIII, tal como no
Renascimento, estavam bastante ligadas desequilíbrio. O desregramento deve ser
evitado: “O excesso de estudo, o excesso de devoção e o excesso de meditação
estão entre as principais causas da melancolia depressiva, por intermédio dos
elementos líquidos do corpo” 301. O tratamento, portanto, estaria no âmbito do
“reequilíbrio” do corpo: atividades que levassem o indivíduo a não se
concentrar muito, viagens, banhos etc. A arte, sobretudo a literatura e o
teatro, até por muitas vezes tematizarem o suicídio, deveriam ser evitadas
pelos melancólicos.
Mas esse pensamento vai perdendo força entre os mais
esclarecidos, que denunciam que a perseguição e o medo, provocado pelas classes
religiosas, levavam ao suicídio mesmo de seus beatos. A melancolia passava a
ser tratada, também, com cada vez menos misticismo e mais como uma doença a ser
tratada.
Os filósofos, em geral, repudiam o martírio, o fanatismo
religioso e a superstição:
“Suas discussões ajudaram,
no entanto, a desculpabilizar e a banalizar a ideia de morte voluntária. Em
primeiro lugar, ao afirmar que ela decorria essencialmente da loucura. Depois,
ao pedir sua descriminalização. Todos estão de acordo sobre este aspecto: é
intolerável, bárbaro e, no mínimo, absurdo, punir um cadáver e fazer que as
verdadeiras sanções caiam sobre os inocentes” 306.
Já foi dito que as motivações das elites eram bem diferentes
das classes populares ou, pelo menos, o fato de documentar seu sofrimento, suas
motivações, ajudaram as classes mais ricas a transformar seu suicídio num
evento. O acesso às letras e possibilitou tratá-lo quase como um ato de
refinamento mental.
“A partir dos anos 1770, a juventude é seduzida pelos impulsos
românticos: depois de Chatterton, em 1770, e Werther, em 1774, surge o suicídio
por desespero amoroso, solidão, vazio da alma, desencanto com a vida, revolta
diante da passagem rápida do tempo” 309.
O autor deixa claro, entretanto, que, apesar da popularização
dos debates entre os jovens, não existe uma explosão das estatísticas. O que há
é a abertura para a reflexão. Os intelectuais desejam entender o sentido da
vida e de seus desencantos nas academias e nos salões nobres, mas “o suicídio
de verdade sempre acontece nas casas simples e nas lojinhas, e isso por um
motivo muito simples: o sofrimento” 310.
O ano é 1777, David Hume escreve um tratado em que entende que
o suicídio não é uma afronta nem a Deus, nem a si mesmo nem à sociedade. Com
medo de represálias, recolhe todas as cópias que estavam ao seu alcance e as
destrói:
“Na consciência coletiva,
o suicídio é um tabu tão importante como o incesto. Bater de frente com essa
proibição é correr o risco de ser marginalizado pelas autoridades e por boa
parcela da sociedade. Será que vale a pena correr todos esses riscos por uma
obra com a qual a sua reputação não tem nada a ganhar? Hume, que não tem nada
de dom Quixote, decide não combater os indestrutíveis moinhos de vento que são
os preconceitos da consciência coletiva.” 314
Hume opta, portanto, pela destruição de todos os exemplares da
obra. Por outro lado, o autor em momento algum se posicionará como um
incentivador do ato. Uma coisa é a teoria, outra é a prática. Diante da ameaça
de suicídio da Condessa de Boufflers, ele a escreverá repudiando o ato e a
desaconselhando.
Minois relembra que a postura dos filósofos é de garantir a
legitimidade do ato diante de uma vida desesperada, e não de uma condenação
moral ou legal. D’Holbach, por exemplo, seguem a mesma linha de Hume. A lenta
saída de uma vida essencialmente religiosa permitia entender o desespero como
algo legítimo ou como doença crônica diante dos impasses da vida.
Minois mais uma vez volta seus interesses contra aqueles que
se utilizam da moral para controlar a vida privada das pessoas e explorar o
medo em nome do poder:
“Livros e mais livros de
apologia do suicídio não provocação uma única morte suplementar se ninguém
tiver bons motivos para se matar. Por outro lado, seria muito melhor se as
pessoas aprendessem a não ter medo da morte. É na exploração desse sentimento
que se baseiam todas as tiranias e todas as situações de injustiça. Só é livre
quem não tem medo da morte” 318.
As estatísticas não sofrem grandes abalos nem com os tratados que
apregoam a liberdade que circunda o ato nem com a criminalização
hiper-proibitiva, que o condena sumariamente. O que ocorre é (a tentativa de)
controle moral por parte das autoridades sobre a vida privada do indivíduo.
“Portanto, o instinto de
preservação nos transforma em nossos próprios carcereiros, ao incutir em nós o
medo de nossa própria libertação, a morte. A esse instinto, que é nosso mais
fiel guardião, os dirigentes acrescentam o tabu do suicídio: ‘Ao proscrever a
doutrina do suicídio, os reis e os padres quiseram assegurar a longevidade de
nossa escravidão. Eles querem nos manter presos em uma masmorra sem saída’.
Assim, mantidos vivos por nosso próprio instinto e pelos preconceitos sociais,
precisamos ter muita coragem para ousar nos libertarmos antes do prazo, uma
coragem auxiliada pelas circunstâncias” 319
A popularização da filosofia torna-se um “problema” para as
reflexões morais. O tedio vitæ, o tédio vital, uma reflexão longa e
demorada a respeito da falta de sentido da vida, e que teria como conclusão o
auto aniquilamento como única saída, aconteceu pouquíssimas vezes. Meslier suicida,
mas Minois o coloca como exceção à regra. O modelo cristão é que essa reflexão
não chegasse ao ato extremo.
Em vários casos dos suicídios de aristocratas, a desilusão com
a vida, manifesta em cartas de despedida, escondia os reais motivos: endividamento,
ruína financeira, vergonha diante da sociedade, desonra, problemas com jogos...
As razões “nobres”, advindas de uma reflexão profunda das cartas, na verdade
omitiam os reais problemas. A justiça, nesses casos, não tinha problemas em
sentenciar “loucura” para evitar a expropriação dos bens e prejudicar as
famílias.
Para Minois, o suicídio filosófico é tão improvável quanto o
romântico: “ninguém se mata por puro raciocínio; apenas uma máquina é capaz de
se autodestruir ao cabo de uma avaliação. Ninguém tampouco se mata por um puro
movimento passional, a não ser que se trate de uma simples loucura” 331.
A dor romântica estaria em alta nos finais do século XVIII.
Que sentido teria a vida se a pena de viver teria superado o medo da morte?
Mais uma vez Minois retoma o problema da proibição:
“A proibição de matar contém inúmeras exceções: por que o
suicídio não seria uma delas, e a mais lógica de todas, já que se trata de
minha própria vida? Será preciso esperar ser expulso da vida, decrépito,
paralisado pelas dores, repugnante, desfigurado, desumanizado? Não é mais digno
partir como um ser humano, enquanto a morte é desejável?”
Goethe, ao escrever Os sofrimentos do jovem Werther aos
25 anos, seria assim o resultado de um momento histórico, expressão de uma
época em que a incomunicabilidade do amor só seria possível pelo gesto extremo
da morte. “A sensualidade contida, a virtude, o destino implacável, a juventude
e a morte: tudo que agitava as sensibilidades no final do Antigo Regime
encontrava um coroamento e uma expressão poética e melancólica em Werther”
Vários são os casos de suicídio após a publicação e leitura do
romance. Mas a proibição da tradução de livros em vários países mostra, talvez,
o contrário. Não que o livro tenha dado causa a mais suicídios do que romances
anteriores. O fato é que as autoridades estavam preocupadas com a popularização
do tema e a necessidade de frear o debate público.
Goethe volta à carga com Fausto, em um suicídio
filosófico, em que há uma absoluta desilusão com a pequenez humana, o desespero
diante da própria fragilidade. Nas palavras de Goethe:
“No fundo do nosso
coração, a inquietude vem fazer sua morada, e ali produz sentimentos profundos,
e ali se agita sem parar, destruindo ali a alegria e a serenidade; ela se
disfarça sempre com máscaras novas: ora uma casa, um pátio; ora uma mulher, uma
criança; é também fogo, água, punhal e veneno! Trememos diante e tudo aquilo
que não nos alcançará, e choramos sem parar por aquilo que não perdemos!” (apud
Minois, 337).
Se a vida é um tormento ou um pesar, a morte voluntária passa
a ser vista mais como libertação do que como aniquilamento. Segundo Minois,
certamente Werther inspira mais que Fausto. Mesmo assim, ambos encontraram na
França e na Inglaterra “concorrentes” inspiradores tanto nas artes quanto na
vida. Entretanto, apesar da popularidade do tema entre os jovens, a taxa de
suicídios continua sem sofrer grandes alterações. Outras motivações, como a
recusa a envelhecer-se, são igualmente populares.
Entretanto, segundo Minois, a uma inspiração direta do
suicídio é sempre o sofrimento, e não os motivos aparentemente racionais.
No início do séc. XIX viria o primeiro ensaio científico das
motivações suicidas: “Reflexões sobre o suicídio”, de Madame de Staël,
diferencia os suicídios “do romântico apaixonado, do filósofo pessimista e do
criminoso arrependido”, e conclui que “Existe algo de sensível ou filosófico no
ato de se matar que é absolutamente inacessível ao indivíduo depravado” 343. Há
algo, portanto, de sublime, de nobre no suicídio, que evidentemente só a elite aristocrática
poderia possuir. Mesmo assim, o livro de Staël marca a saída de defesas e
acusações apaixonadas, do âmbito da moral, para análises mais racionais, na
esfera sociológica.
Minois difere o suicídio das classes aristocráticas para as
classes pobres:
“Entre a população
humilde, a realidade cotidiana do suicídio é menos gloriosa e mais estável: as
pessoas se matam há séculos pelos mesmos motivos — os sofrimentos básicos — sem
fazer discurso. Mas esses suicídios não provocam alvoroço, pois não são motivados
por ideias nobres nem correspondem aos cânones do heroísmo, além de serem
cometidos de forma indigna: a forca [...]”
As condenações ainda são muito frequentes no final do séc.
XVIII. “A miséria e a decadência física e moral continuam sendo as principais
causas da morte voluntária entre a população rural” 349. O alcoolismo ajudou a
acentuar o estado de fragilidade mental de algumas pessoas.
As famílias pobres precisavam relatar sinais de loucura para
se livrar das penalizações ou mesmo recorrer a métodos como simulação de um
latrocínio, espancando o corpo mesmo depois de morto. Mesmo assim, nem todos
escapavam. Minois descreve o caso de Christophe Caud, qual vale a pena
reproduzirmos a sentença, que impressiona pela brutalidade da condenação no final
do séc. XVIII:
“A sé, acolhendo as
conclusões dos agentes reais, declarou que o morto Christophe Caud foi
devidamente reconhecido culpado de ter se matado e assassinado a si mesmo por
meio de uma gravata de musselina presa ao pescoço e, em seguida, a uma escada servindo
de prancha embaixo de sua casa, para cuja reparação e o bem do interesse
público ordena que sua memória seja apagada e suprimida para sempre, que seu
cadáver seja preso em uma grade e arrastado pelas ruas e cruzamentos comuns e,
em seguida, até a praça das liças para ser pendurado pelos pés e erguido na
forca, permanecendo ali três horas e, em seguida, seja jogado no depósito de
lixo; declara seus bens móveis adquiridos e confiscados em benefício de quem
ele depende, seus custos processuais previamente abatidos deles, e, além disso,
condenou a 3 libras de multa em benefício de Sua Majestade, a ser extraída de
seus outros bens, além de condená-lo a arcar com as custas” 351-352
Ao final do Antigo Regime, portanto, ainda havia condenações,
sobretudo entre as classes mais pobres. As penalizações diminuiriam de número e
intensidade até 1789, quando a Revolução Francesa viria a mudar completamente a
legislação. A secularização do assunto e da legislação ajudou bastante na
desmistificação do suicídio, já não sendo mais obra do pecado ou do diabo.
O suicídio dos prisioneiros ainda continuava sendo
implacavelmente condenável e passível de punição ao corpo. Como afirmamos
anteriormente, denota a falência do Estado tanto em prevenir o crime como na
sua incapacidade de puni-lo.
Na Inglaterra foi criada a primeira associação de tentativa de
tratamento dos sobreviventes de tentativas de suicídio em 1774. A “Sociedade
Humana” inicialmente era destinada ao salvamento de afogados. Como as
tentativas de suicídio dessa maneira eram frequentes, logo ela mudou seus
interesses, passando a agir no tratamento e prevenção de suicídios, tentando
escutar as pessoas em situação de sensibilidade melancólica.
A popularização do tema faz crescer o debate entre os jovens.
De acordo com o autor, o aumento do número de casos, inclusive entre jovens de
menos de 14 anos, está mais relacionado a uma melhor especialização das
estatísticas e da imprensa do que a um aumento efetivo do número de suicídios.
“... a curva geral é estável, até mesmo declinante, mas a opinião pública,
extremamente impressionada pelos anos difíceis, tira conclusões inquietantes”
357.
Os bilhetes suicidas dos jovens ajudam, por um lado, a
conhecermos o cotidiano de trabalho extenuante, inclusive de muitos jovens que eram
explorados por pais, parentes, empregados ou vendidos para outras famílias; por
outro lado, ajudou a afastar os misticismos de quem atribuía o ato às tentações
demoníacas:
“Na maioria das vezes, o
bilhete suicida é uma maneira simples de se desculpar, mostrando que a pessoa
foi induzida àquele gesto por um destino injusto. [...] Os bilhetes suicidas
levam a cabo a secularização da morte voluntária, já que eliminam dela o papel
do diabo, inserindo-a em uma lógica racional e humanamente explicável. O
público se acostuma a ler essas cartas, a tomar conhecimento do suicídio como
de um fato comum, um fait divers, e não mais como um ato criminoso.
Afirmação do individualismo e da liberdade, como também um modo de influenciar
a sociedade, o bilhete suicida é típico do espírito iluminista” 360.
Os jornais também são responsáveis por divulgar, com desprezo,
suicídios de mulheres grávidas e abandonadas que preferem a morte à imagem de “desonra”
social. Mesmo em casos de estupro, o suicídio é relatado com reserva na França.
As mulheres que se matam por amor também não são levadas muito à sério, pois os
suicídios por amor são reservados às classes nobres. Para as classes mais
humildes, o amor, sentimento tão nobre, era considerado inacessível. Afastados
da “nobreza do ato”, em alguns casos, duvidava-se que as pessoas mais simples
pudessem amar a tal ponto que pudessem se matar. Para os mais pobres “os
suicídios geralmente são tratados com escárnio: as histórias de amor nas
choupanas não podem ser tão sérias como nos castelos”. 360-361.
O autor observa que a primavera (mês de maio na Europa) é onde
o número de suicídios ascende. O número de noivados e de casamentos, a estação
do Renascimento, faz crescer o sentimento de “desespero dos solitários, dos
abandonados e dos marginalizados de todo tipo. Estação dos amores, a primavera
é o tempo das grandes decepções, e também o tempo das doenças, que se abatem
sobre os organismos fragilizados pelo inverno e pela quaresma” 362.
Além disso, a urbanização ajudou a enfraquecer os antigos
vínculos rurais que estabilizavam as vidas das pessoas: a vida familiar,
religiosa e as festas que davam coesão e estabilidade social se perdem na vida
urbana, associada ao trabalho e à solidão.
A imprensa na Inglaterra tem um comportamento diferente da
França. Os jornais ingleses noticiam com muito mais naturalidade e popularidade
os suicídios, dando impressão de maior frequência. Na França, o assunto é mais
restrito. A ideia de que a vida do súdito pertence ao rei leva a opinião
pública a entender o suicídio como fracasso da coroa e do Estado, que não pôde assegurar
o bem-estar dos súditos. O que colocava, inclusive, em xeque a ideia de
infalibilidade do rei. Na França, o silêncio será uma imposição e censura sobre
os jornais:
“O governo vai além,
impondo silêncio em torno dos casos de suicídio: as gazetas são proibidas de
falar das mortes voluntárias [...] Fim das execuções, sepultamentos discretos;
o suicídio só é evocado à meia-voz. O suicídio não existe: a estratégia da
avestruz instaura as condições ideais para a perpetuação e o fortalecimento do
tabu” 366.
A imprensa inglesa tratava o tema com mais naturalidade,
beirando a banalização. A censura era bem mais branda devido a uma ideia de
menor pertencimento do súdito à coroa. Os jornais publicavam os bilhetes
suicidas, os comentários dos leitores, popularizando o tema.
Entretanto, na Inglaterra a descriminalização viria depois da
França. Há um consenso na França que, apesar de ser uma afronta a Deus, nem os suicidas
nem suas famílias devem ser penalizados. A Revolução de 1789 daria o passo decisivo
para a descriminalização.
No campo religioso e no campo militar perduram os pensamentos
suicidas. Na religião cristã, as mortificações do corpo são substitutas para o
suicídio direto, transformando o crente em um morto-vivo. Mas o autor deixa
claro que essa mortificação, muito comum também entre os filósofos, não tem
nada a ver com o ato direto de tirar ou não a vida. A reflexão, por mais
pessimista, ajuda a afastar a ideia: “Esta é, talvez, uma das grandes lições,
inesperada, do século XVIII: refletir sobre a morte, e até mesmo desejá-la, é
renunciar a procura-la, pois significa desfrutar da essência da humanidade:
pensar nela mesma e em seu fim” 374.
Ao contrário dos militares, que elevam as estatísticas das
mortes voluntárias, seja pelo ato direto do suicídio, seja pelo suicídio
indireto, de propensão a situações de evidente perigo, de proximidade com as
armas, ou seja, ainda, pelos momentos de profunda depressão pelos quais passam
os veteranos de guerra.
“As estatísticas do século
XIX confirmam amplamente o índice bastante elevado de suicídio entre os
militares. Em 1805, no campo de Boulogne, Napoleão tem de tomar providências,
equiparando o suicídio à deserção. [...] Duas causas principais estão na origem
desse fenômeno: os rigores do regulamento e da vida militar em geral, elementos
de frustração e medo, quanto aos motivos; a convivência com a violência e a
posse de uma arma de fogo, quanto aos meios.”375
O amadurecimento da reflexão, no séc. XIX, ajudou a localizar
o suicídio primeiro no campo sociológico depois no campo psicológico. Há um
consenso de que as punições são inócuas. Ele se torna um fato puramente humano
e, por isso, passível de reflexão, e não de punição.
“A responsabilidade do indivíduo
se dilui em um conjunto complexo e transforma o ‘criminoso’ em vítima: vítima
de sua psicologia cerebral, vítima das desgraças que atingem seus familiares,
vítima do comportamento dos mais próximos que contraria suas relações afetivas
ou sua sensibilidade, vítima de uma organização política e social que conduz à
miséria e ao desespero” 376
A descriminalização seguirá esse lento percurso, que precisará
estruturar as bases morais antes de reestruturar a jurisprudência.
Na última parte do livro, Minois destaca que o século XIX
seguirá um estranho retrocesso no debate. Por um lado, há a descriminalização,
o que caracteriza um avanço; por outro, há o silêncio, quase um encerramento do
debate no plano filosófico, que perdura até nossos dias.
Na construção do Estado tal como nós o conhecemos — dentro dos
princípios de igualdade perante a lei — a Revolução de 1789 colaborou
decisivamente para a descriminalização do corpo e das sanções sobre a família,
mas a necessidade de punição dos condenados fez com que se impusessem algumas
questões. [Até hoje, quando um detento entra em uma cela, lhe é solicitado que
retire cintos, cadarços, objetos cortantes, quaisquer mecanismos que
possibilitem atentar contra si mesmos].
“[...] O poder político,
em nome da coesão social, não pode admitir o direito ao suicídio. O governo
revolucionário não pode tolerar, em particular, o suicídio dos prisioneiros
políticos, mesmo que estes últimos estejam condenados à morte. Decerto existe
um aspecto fiscal nessa postura, já que, ao se matar, o acusado escapa da
condenação e, portanto, do confisco de seus bens” 379
Dessa maneira, o autor descreve que, durante o processo
revolucionário, vários guilhotinados, inclusive Robespierre, ou estavam quase
mortos ou já estavam mortos. Havia uma importante necessidade simbólica de
fazer com que a lei da execução fosse cumprida.
“Por meio da execução de
cadáveres, o governo revolucionário retoma espontaneamente a prática do Antigo
Regime, demonstrando de modo involuntário que o suicídio é a arma suprema da
liberdade individual diante da tirania coletiva do Estado, seja ela qual for.
Uma arma contra a qual todos os poderes e todas as leis são impotentes” 380.
Há uma profusão de suicídio políticos ao final da Revolução de
1789. Matar-se pela pátria, pela Revolução, por uma causa pela qual se acredita
que valha a pena, o que Durkheim chamaria de suicídio altruísta. A imagem de
Catão e Brutus são trazidas de volta. “Todos têm consciência de que estão
retomando os exemplos ilustres dos romanos. O suicídio é, para eles, o refúgio
do homem livre” 185.
Os suicídios nos períodos revolucionários, final do séc. XVIII
e início do XIX, retomam a figura de Catão, inspirando-se em uma figura romana
e em um suicídio patriótico; mas também se inspiram no suicídio pelo sentimento
exacerbado de Werther. “Militares que cometem suicídio para não se render
existem em todas as épocas. A Revolução, com seus voluntários imbuídos de
entusiasmo patriótico, é pródiga em acontecimentos do gênero” 386.
A ideia de martirizar-se em nome de uma causa maior ou mesmo
para resistir às transformações revolucionárias concerne às elites e lideranças
políticas; se coloca ao lado da ideia da liberdade suprema, do ser humano livre
para decidir seu próprio destino contra a tirania.
“Catão e Brutus fazem parte do universo cultural de inúmeros
futuros chefes revolucionários, além de encarnar a vitória da liberdade suprema
sobre os tiranos. Os estoicos, que forneceram tantos exemplos de suicídio
político, também são muito admirados.” 388 Fazem uma “síntese entre o espírito
filosófico e o espírito romântico” 388.
Para a população comum, os motivos continuam sendo os mesmos:
a pobreza, sofrimento e o desespero. Apesar de os jornais serem alarmantes —
devido ao próprio crescimento da imprensa — as estatísticas são estáveis. A
primavera continua sendo o período mais propício, as mulheres se matam mais
jovens (mais desesperadas) e os homens mais velhos (mais desiludidos).
“Um fato marcante é a imensa proporção de celibatários: dois
terços do total, incluindo os divorciados. A solidão é um elemento
determinante, mesmo para aqueles cuja família mora na mesma cidade; trata-se em
geral de pessoas que caíram na miséria e deixaram de frequentar os parentes”
390
As famílias, ao relatarem as possíveis causas, tentam
distanciar-se do fato, beirando a indiferença.
Mas o importante para Minois é constatar que a ausência das
antigas proibições não alterou significativamente as estatísticas:
“Como acabamos de constatar, a interrupção de todas as formas
de repressão não se traduz no aumento do índice de suicídio, prova de que a
legislação não tem qualquer influência sobre a pessoa desesperada que decide se
matar. Em compensação, os vivos que pertencem ao círculo mais próximo da vítima
sentem sempre o mesmo mal-estar, uma mistura de pena com um vago sentimento de
culpa, por não ter conseguido tornar suportável a existência de seu familiar ou
amigo. O suicídio permanece um estigma tanto para a família como para a
coletividade, que vivenciam a morte voluntária de um de seus membros como seu
próprio fracasso. Aliás, ao atribuir ao suicídio causas sociais, os estudos
sociológicos do século XIX vão reforçar esse sentimento de culpa e, em
paralelo, o desejo de encobri-lo” 391.
O século XIX, segundo Minois, é marcado por uma mudança
profunda. O suicídio deixa de ser uma expressão da liberdade e passa a ser
tomado como um problema moral, social ou psiquiátrico. O resultado é a saída do
suicídio do debate público — da descriminalização — para o âmbito privado e,
por isso, muito mais silencioso. Assim, a “consciência individual” passa a ter
um peso muito maior.
“Depois do interlúdio revolucionário, as autoridades morais, e
até mesmo políticas, levadas pelo espírito de reação e de restauração,
dedicaram-se a empurrar vigorosamente o suicídio para dentro do pacote de
proibições de atos contra a natureza do qual, segundo elas, ele jamais deveria
ter saído” 392.
“A psiquiatria e a sociologia põem em destaque a
responsabilidade das fragilidades morais e mentais do indivíduo, bem como as
deficiências e injustiças da estrutura social” 392
Jean-Claude Chesnais “[...] ressalta o aumento muito
significativo dos índices, que seria uma decorrência dos efeitos desagregadores
da Revolução Industrial: enfraquecimento dos vínculos tradicionais e da
religião, emancipação do indivíduo, cujo isolamento é crescente, importância
das oscilações econômicas e miséria operária [...]”
A Igreja, por outro lado, apesar da perda de poderes sobre a
legislação (enfraquecimento do Direito Canônico), continuará condenando
categoricamente, rejeitando os ritos fúnebres aos que tiram a própria vida.
Os avanços científicos não colaboram muito para o debate.
“A própria medicina ajuda a transformar o suicídio em uma
‘doença vergonhosa’. Desde o início do século XIX, as pesquisas do dr. Pinel
vão nesse sentido. No Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental ou
a mania, publicado no ano de IX (1801), ele relaciona a tendência suicida a
uma fragilidade mental que o leva o indivíduo a exagerar os acontecimentos
desagradáveis de sua vida” 396.
Dessa maneira, os tratamentos mais frequentes eram o
eletrochoque, as duchas frias ou os medicamentos mais estremos. Baseados na
ideia de que os métodos brandos não surtem grande efeito, o “choque” mudaria a
percepção do doente. “O dr. Pinel percebe, portanto, que a repressão é a melhor
maneira de curar as tendências suicidas. Passa-se da esfera médica para a
esfera moral: ‘Instrumentos draconianos de repressão e um imponente sistema de
terror devem secundar os outros efeitos do tratamento médico e do regime’ 396.
“A medicina do início do século XIX tende, assim, a
culpabilizar a melancolia depressiva e a propensão ao suicídio utilizando o
‘tratamento moral’ baseado na punição, como se fosse uma perversão qualquer”
396.
O debate sai das ideias místicas medievais e passa a um debate
estritamente moral. A liberdade, ou o excesso dela, passa para o plano das
revisões em nome de um reequilíbrio. “A liberdade gera ao mesmo tempo incerteza
e insegurança, causadoras do medo, da loucura e do suicídio.” 397
A liberdade total leva à perda de uma autoridade, o que seria
fundamental para o equilíbrio do ser humano. Minois cita Esquirol: “O homem
precisa de uma autoridade que controle suas paixões e governe suas ações.
Entregue à sua própria fraqueza, ele se torna indiferente, depois inseguro;
nada sustenta sua coragem, ele está desarmado contra os sofrimentos da vida,
contra as angústias do coração” 399.
“Portanto, para onde quer que nos voltemos, o suicídio é um
tabu que é preciso ainda envolver o silêncio. Afronta a Deus, depravação moral
de uma pessoal que não respeita os valores estabelecidos, debilidade mental,
tragédia ligada à anarquia libertária e ao materialismo, ou a um excesso de
beatismo — em todo caso, doença da mente, da consciência e da sociedade —, o
suicídio é reprimido juntamente com os todos os outros interditos sociais” 399.
Minois destaca que o folclore e as superstições não
desaparecem do imaginário do senso comum, ajudando na perpetuação do
misticismo: “[...] na Creuse, os suicidas são condenados a devolver eternamente
as pedras para os leitos dos rios; na Polônia, eles viram assombrações e
aterrorizam os vivos. Por toda parte, o folclore apresenta uma imagem muito
negativa dos suicidas” 399.
Mas é impressionante que o debate tenha se retraído no século
XIX.
“Desse modo, o século XIX
anulou, em grande medida, o resultado das reflexões realizadas do Renascimento
ao Iluminismo. O Renascimento apresentara a questão: ser ou não ser; o século
XVII tentara abafá-la produzindo substitutos para ela, e o século XVIII tinha
aberto o debate, que mostrara que o suicídio tinha motivos diversos. No século
XIX o debate é encerrado: ser ou não ser é uma questão inconveniente,
inoportuna e chocante. Portanto, silêncio. Sim, o suicídio existe, as estatísticas
comprovam amplamente; porém, se é possível tentar explicar suas origens,
legitimá-lo está fora de questão. O suicídio é uma doença mental, moral, física
e social. Pelo menos quanto a isso as autoridades políticas, religiosas e
morais estão de acordo”. 400
Parece-nos que, uma vez “resolvida” a questão legal e de como
Estado deveria posicionar-se frente ao suicídio, há uma retração para o campo
da moral religiosa e um abandono de uma visão da liberdade: “Fragilidade,
covardia, loucura, perversão: o suicídio é tudo menos uma manifestação da
liberdade humana, o que os mais audaciosos pensadores entre os séculos XVI e
XVIII tinham procurado sugerir” 400
A nível coletivo, a recorrência dos mitos revela bastante
sobre as sociedades. Por que Hamlet é tão importante e encenado até os dias de
hoje? A questão que ele nos traz é latente e perene:
“Quanto mais escondemos os
suicídios concretos, mais falamos do suicídio abstrato, um sinal de que a morte
voluntária continua incomodando. A questão de Hamlet não para de renascer das
cinzas. As ciências humanas e a medicina tentam explicar esse comportamento
desconhecido e intrigante. O suicídio horroriza, ao mesmo tempo que continua
sendo a solução definitiva ao alcance de todos, que nenhuma lei, nenhum poder
consegue proibir” 400.
Na entrada do século XX, Minois entra rapidamente no campo da
psicanálise, descrevendo o suicídio como uma revolta contra si mesmo, na
impossibilidade do aniquilamento do(s) outro(s).
“A primeira teoria de
Freud é ilustrada por esta frase de Flaubert a Louise Colet, em 1853:
‘Desejaríamos morrer, já que não podemos fazer que os outros morram, e todo
suicídio talvez seja um assassinato reprimido’. Por essa ótica, o índice de
suicídio tende a aumentar nas sociedades mais organizadas, naquelas em que a
violência exterior é a mais regulamentada, e o índice de suicídio seria, então,
inversamente proporcional ao índice de homicídio” 401
Quanto mais “civilizada” é uma sociedade, mais o indivíduo
sente o peso das regras sobre seu corpo. Aí vale a máxima: a civilização não é
garantia de felicidade.
Minois chega a citar o conceito de pulsão de morte mas, apesar
da polêmica desse conceito, que não nos cabe explorar aqui, parece-nos que esse
conceito tem uma abrangência bastante diferente, bem diferente da restrição do
tema do suicídio.
Para o autor, a fragmentação social é particularmente um fator
importante no aumento do índice dos suicídios. Isso aparece tanto nas suas
descrições do crescimento dos burgos, na Idade Média, quanto na expansão
desenfreada das metrópoles do século XX.
O processo civilizatório, com seus rigores morais, é
determinante e o suicídio aparece como uma resposta possível:
“[...] algumas situações
são particularmente favoráveis a um elevado índice de suicídio: a falta de
integração a um grupo, o rigor excessivo do código moral, que multiplica as
ocasiões de erro e de vergonha, os períodos de paz. Em compensação, é baixo o
número de suicídios em período de guerra, que reforça a solidariedade e oferece
uma razão para viver, entre as pessoas casadas, e em particular entre os
católicos socialmente integrados à paróquia” 402.
Por outro lado, o individualismo proporcionado pelo
capitalismo liberal pode ter sujeitado o indivíduo a ainda mais pressões pelo
sucesso financeiro e pelo fracasso na carreira.
“Todas essas explicações
que se completam mais do que se contradizem, ressaltam a complexidade desse
ato. A decisão de pôr fim à vida resulta de inúmeros fatores, dos quais muitos
independem da vontade, para não mencionar apenas, evidentemente, suicídios
conscientes. No entanto, a escolha final continua sendo do indivíduo” 402.
Minois destaca que no século XX a reprovação permanecerá e o
debate se limitará a condenar ou compreender, mas de maneira muito superficial
e limitada às circunstâncias do momento da escolha.
“As contradições
permanecem as mesmas: admiração pelos suicídios literários, pelos suicídios
guerreiros de militares que se recusam a abandonar o posto, pelos suicídios de
resistentes que engolem o cianureto para não falar sobre tortura e, ao mesmo
tempo, condenação de todos os suicídios ordinários de infelizes cujos motivos
não parecem suficientemente nobres” 402.
Isso se deve aos mecanismos de poder que, envernizando-se das
pautas morais, eclipsaram o debate do tema do suicídio assim como de outros
como eutanásia e, mais recente, a manipulação genética.
“Abafado desde o início do
século XIX, o debate está ressurgindo por intermédio desses exemplos famosos.
Ele assume também uma nova dimensão com o problema específico da eutanásia.
Essas questões são importantes demais para serem escamoteadas e abafadas. A
sociedade não vai conseguir escapar nem do debate sobre o suicídio e a
eutanásia nem do debate sobre as manipulações genéticas, pela simples razão de
que é seu próprio futuro que está em jogo” 403.
A questão central, para Minois, permanece nas autoridades que
impossibilitam qualquer discussão para manter o controle da população: “Tanto
hoje como no século XVIII, os responsáveis continuam silenciosos a respeito do
problema do suicídio”. O importante é uma sociedade continue caminhando
alegremente: “‘O suicida é um estraga prazeres’, observou por sua vez F.
Zenati”
Como uma necessidade intrínseca ao problema da (in)existência,
a questão hamletiana permanece: “Ser ou não ser”?
“Longe de incitar ao
suicídio, essa pergunta estimula a mente humana a aprofundar o sentido da vida,
com o risco de pôr em destaque o sentimento de absurdo. Não é esse risco que
faz, em parte, a grandeza da humanidade? Mas o próprio absurdo da existência
pode ser aceito: ‘Tiro, assim, do absurdo três consequências: minha revolta,
minha liberdade e minha paixão’, escreveu Albert Camus. “Por meio unicamente de
uma manobra da consciência, transformo em regra de vida o que era um convite à
morte, e recurso o suicídio” 404-405.
Minois finaliza o texto com uma explanação sobre a história
intelectual. Os momentos de “equilíbrio” — ainda que essa palavra implique uma
série de problemas na ordem das classes sociais: qual equilíbrio? equilíbrio
para quem? A que interessa essa estabilidade? — devem ser preservados para
evitar as crises. É nos momentos de desestabilidades que os suicídios veem à
tona e trazem consigo os debates existenciais que ele suscita.
“A alternativa entre “eu
sei” e “que sei eu?” dita o ritmo da história intelectual. Nos períodos de
equilíbrio e estabilidade, o pensamento aprofunda as respostas; nos períodos de
crise, ele faz as perguntas. Na busca pela verdade, a mente humana passa das
certezas à dúvida, causa de novas e ilusórias certezas. Se estas últimas são
tranquilizadoras, as dúvidas são estimulantes. A alternância, aliás, não é
rigorosa, e a luta é permanente. Durante os períodos de crise de consciência, o
volume de dúvidas chega a abalar as certezas, que resistem e utilizam a força
para abafar as perguntas.” 407
Em sua conclusão, Minois insiste na tese de que as autoridades
tem papel importante e que quase sempre condenam o suicídio para garantir a
estabilidade e, portanto, a ordem social:
“Pois os responsáveis e os
dirigentes políticos e religiosos são contrários às dúvidas. Se governar é
prever, também é saber. Não se dirige com dúvidas, mas com certezas. Em nome de
quê se poderia regulamentar de outro modo a vida social? Como, em particular,
será possível governar pessoas que nem mesmo tem a certeza de que devem
continuar vivas? Que ascendência se terá sobre súditos ou cidadãos que têm toda
a liberdade de morrer a seu bel-prazer? Como lhes inspirar confiança se alguns
deles demonstram a cada dia sua desconfiança e seu desespero ao preferir a
morte à vida?” 407.
Quando é praticado em nome do rei, do Estado, da Igreja ou
simplesmente da ordem, o suicídio pode ser tolerado e até mesmo incentivado,
conquanto que simbolize o reforço da “ordem social” e que garanta a manutenção
dos poderes. Dessa maneira, as classes mais ricas sempre tiveram mais acesso a
absolvição de seu ato pois sempre puderam, por meio de discursos ou cartas,
justificar ou legitimar seu suicídio.
“O suicídio entre as
elites, que diz respeito a um número limitado de indivíduos, obedece a
convenções e a um ritual que sofre os efeitos da moda. As pessoas se matam com
arma branca ou pistola, instrumentos nobres, e por causas nobres: honra,
dívidas, amor. Esses suicídios, aliás, são em grande medida tolerados por
autoridades indulgentes, pois não contestam a ordem social. A punição contra os
cadáveres e contra os bens dos suicidas aristocráticos é rara. Os intelectuais,
por sua vez, falam de suicídio, mas o cometem muito pouco, mesmo aqueles que
são favoráveis à sua liberalização” 408.
No caso dos pobres a coisa se dá de maneira diferente. As
punições tentavam garantir que, pelo medo, o indivíduo se desestimulasse dos
pensamentos infames e “egoístas”. É claro que a situação de miséria não deveria
ser considerada como, também, compreendida como penitência necessária para uma
possível entrada no reino dos céus. Assim, o pobre não deveria se furtar às
provações da vida, por mais pesadas que poderiam parecer.
“Como dissemos, a
repressão contra esse suicídio comum e prosaico é feroz: cadáver arrastado
sobre a grade, pendurado pelos pés, queimado ou jogado no depósito de lixo, ou,
na Inglaterra, enterrado sob uma estrada importante com uma estaca enfincada no
peito; o inferno é garantido e os bens confiscados. Diante dessa brutalidade
judicial, a oposição aumenta nos séculos XVI e XVIII” 409.
O objetivo de Minois é mostrar a iniquidade da moral que
aprova ou reprova o suicídio conforme lhe convém a preservação da ordem de
poderes. Heroísmo para os ricos e poderosos. Para os pobres, a desonra que
precisava ser escamoteada a todo custo.
“O suicídio de pessoas do
povo, cometido quase sempre por enforcamento ou afogamento, é vivenciado como
uma vergonha familiar, e procura-se, de modo sistemático, camuflá-lo como
acidente ou atribuí-lo a um gesto de loucura. Aliás, o debate de ideias sobre o
suicídio das elites leva as autoridades do século XVIII a reprimido com mais
prudência e discrição” 409.
O autor finaliza apelando para a necessidade do debate.
“Apesar de tudo, é através
do caso extremo da eutanásia que o problema reaparece nos dias de hoje, apesar
das pressões das autoridades morais e políticas — aquelas teimando em afirmar
que mesmo os sofrimentos extremos incuráveis têm um valor positivo, e estas temendo
os descontroles. Devido a esses motivos, milhares de seres desumanizados por
sofrimentos intoleráveis são condenados a viver. Na dramática transformação de
valores a que assistimos, os debates, polarizados em todo na bioética, não
deveriam também contemplar uma tanato-ética? 410.
------------------------------------------------
Post-scriptum:
Há um debate bastante raso mas também muito recorrente sobre a
naturalidade ou não do ato do suicídio e de tantas outras ações humanas. Apesar
de achar um tanto quanto desnecessário, deixo aqui uma modesta e descompromissada
opinião e que mudará muito pouco os rumos da discussão. Mesmo assim, gostaria
de argumentar bem rapidamente sobre isso de duas maneiras opostas.
1 — Como se define “o que é natural”? O ser-humano age de
infinitas formas não-naturais. A partir do momento em que criamos ferramentas
para vivermos melhor, que modificamos nosso ambiente, nos tornamos
não-naturais. Não nascemos com nenhuma ferramenta: tacape, roupas, linguagem,
escrita, celular... Aprendemos diariamente a criá-las, a recriá-las e a usá-las.
O ser-humano só é ser-humano, portanto, por fazer coisas especificamente não-naturais.
Oras, questionar o suicídio como algo “não natural” afeta, pois, muito pouco o
debate.
2 — O argumento anterior pode ser invertido, com igual
racionalidade. De forma natural é possível querer e efetivamente deixar
de existir? Em outras palavras, um animal, diante do perigo inescapável e da
morte certa, pode abreviar a angústia e o sofrimento? Sim. O escorpião, por
exemplo, se auto-inocula o próprio veneno quando percebe que não conseguirá
fugir de um círculo de fogo. Ou seja, há casos de outros animais, no campo
estrito da “natureza”, que desatam a existência para evitar o martírio. Essa
natureza também estaria no ser-humano?
--------------------------------------------------
Apenas para finalizar o texto, lembro que se a vida é uma
dádiva e não um fardo, é preciso que a liberdade seja levada à sério. Para que
seja uma dádiva, o ser-humano precisa ter a prerrogativa de recusar esse
presente; do contrário, não é presente, e sim condenação. “Condenados a viver”,
o autor diz em um momento do texto.
Minois, em sua tese, nos mostra que as atitudes das lideranças
políticas, morais e religiosas, convictas ao condenar o suicídio, forçaram o
indivíduo a permanecer vivo, condenaram-no a existir e, pior, falharam miseravelmente
nessa tarefa, pois não evitaram e nem evitarão o suicídio.
Talvez a melhor maneira de diminuir as possibilidades de suicídio
— e não de erradicá-lo, pois impossível — é, por um lado, lutando para que a
existência humana seja menos dolorosa na terra e, por outro, justamente
confiando ao ser-humano a liberdade e a responsabilidade que lhe cabem em sua
existência individual e coletiva. É arriscado. Mas confiar na moralidade
soberba das autoridades, como mostrou Minois, é um caminho evidentemente fracassado.
Se desejamos a valorização da vida e se queremos que nossa existência tenha
algum sentido, o risco que precisamos correr é a liberdade.
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