terça-feira, 26 de julho de 2022

Venturas Mitológicas - Apresentação

No princípio eram as reticências... e o desejo, por não ter para onde ir, foi buscando as palavras. Primeiro as dos outros autores, depois as nossas. E, assim, vamos estudando e compartilhando nossas reflexões e inflexões sobre o conceito de mito, pensando em suas implicações simbólicas para nossa banal existência.

Essa página reúne textos acerca de mitologia e suas decorrências histórico-psicanalíticas. Nosso intuito é estudar o conceito de mito, de mitologia e de arquétipo para compreensão tanto do que se apresenta como consciência coletiva quanto das camadas mais profundas da nossa psique.

Junito de Souza Brandão nos fala da "perenidade do mito", de sua característica de perdurar que ajuda a iluminar os caminhos e o entendimento do ser humano. Assim, atemporais, os mitos extrapolam a própria narrativa para alcançar nossos dias e nossa vivência mais elementar. 

Carlos Byington nos lembra que "os arquétipos são ainda mais do que a matriz que forma os símbolos para estruturar a Consciência. Eles são também a fonte que os realimenta. Por isso, os mitos, além de gerarem padrões de comportamento humano, para vivermos criativamente, permanecem através da história como marcos referenciais através dos quais a Consciência pode voltar às suas raízes para se revigorar".

Essas palavras nos ajudam a compreender a pujança dos estudos dos símbolos e narrativas que o ser humano construiu ao longo do tempo. Publicaremos aqui nossos estudos não só acerca dos mitos que auxiliaram a erigir a psicanálise. O objetivo é, com o desenvolvimento dos textos, colaborar para a expansão da compreensão histórico-psicanalítica para além dos mitos gregos tradicionais, alcançando outras forças simbólicas, com as quais convivemos cotidianamente.

Tártaro e Auschwitz

                                                                                                                                                                            Foto: Vitor Hugo

Bem diferente do inferno flamejante que nos habituamos no imaginário cristão, o Tártaro grego era o lugar dos suplícios, das lamentações mas, principalmente, o lugar da irracionalidade. Para os gregos, que prezavam o pensamento e a lógica na construção da política e da sociedade ideal, as profundezas eram um lugar onde reinava o irracional, o ilógico, um abismo da desrazão. Um exemplo clássico é a punição perpétua de Sísifo, condenado a levar uma pedra enorme montanha acima para, ao final da tarefa, exausto, deixá-la cair, recomeçando o trabalho outra vez eternamente.

Tártaro se originou do Caos, ao mesmo tempo que Eros e Gaia (a Terra, que logo deu origem a Urano, o Céu). Assim, os deuses iniciais, Urano e Gaia, ficaram com a parte racional, Eros representava o desejo e Tártaro, o irracional.

O mundo inferior, as profundezas da Terra, Tártaro estaria destinado a receber os piores mortais e imortais. Ficava abaixo dos Campos Elísios, dos que tinham pouco a purgar e de Ébero, local em que os suplícios eram bem mais pesados. Tártaro era o mais profundo dos mundos, bem abaixo do Hades. Por isso se dizia que o está tão longe de Gaia quanto esta está de Urano; em outras palavras, está tão distante dos nossos pés quanto o céu de nossas cabeças.

Como uma masmorra, podia ser usado para aprisionar os inimigos das divindades. Os Ciclopes foram para lá enviados e salvos por duas vezes.

Para lá também foi mandado Tântalo, filho de Zeus com Plutó. Como castigo por atentar contra o Olimpo, por seguidamente colocar os deuses à prova, Tântalo é apartado das divindades, condenado a sentir fome e sede por toda a eternidade. E pior: diante de frutos radiantes, não podia comê-los nem alcançar os galhos. Mergulhado em água límpida, não podia bebê-la pois ela lhe escorria entre os dedos antes de chegar à sua boca.

O tempo não existe no Tártaro. A eternidade pode ser reduzida a um instante que, de tão terrível, jamais acaba. Tudo é o eterno retorno à punição. Daí também seu caráter enlouquecedor.

Primo Levi, em "É isso um homem" nos dá uma ilustração tão perfeita quanto tenebrosa do Tártaro no século XX. Em sua chegada a Auschwitz, "No fundo", no abismo, no mais profundo dos mundos, alijado da humanidade, é onde começa seu relato da espoliação de qualquer esperança e a certeza da morte.

Depois de uma viagem de quatro dias sem beber e sem comer nada, na qual muitos morreram, ele e os outros prisioneiros famintos e sedentos que chegaram vivos foram colocados numa enorme sala. Nela havia uma torneira. Mas quanto tomaram a água, ela estava intragável. Poluída, adocicada, morna, tinha odor de pântano. A descrição de Levi é espantosamente precisa: 

"Isto é o inferno. Hoje, em nossos dias, o inferno deve ser assim: uma sala grande e vazia, e nós, cansados, de pé, diante de uma torneira gotejante mas que não tem água potável, esperando algo certamente terrível, e nada acontece, e continua não acontecendo nada. Como é possível pensar? Não é mais possível; é como se estivéssemos mortos. Alguns sentam no chão. O tempo passa, gota a gota".

Auschwitz deve ser lembrado dessa maneira: o lugar do irracional, onde toda a lógica, o discernimento e a dignidade desapareceram. Não se sabe se a torneira estava ali como desperdício ou como zombaria. O certo é que não se sabe. A própria tentativa de compreender já faz parte do castigo. O enlouquecimento é a morte da mente antes da morte do corpo.

Mas, à diferença da Hélade, onde Tártaro era filho do Caos, Auschwitz é filho do homem. É a imagem de um "mundo inferior" não do cosmos, mas do próprio ser-humano.

Na Grécia, a separação era nítida e física: Urano (Céu), Gaia (Terra) e Tártaro (profundezas). Nos dois primeiros, os deuses e os homens tentavam manter a sanidade e a racionalidade, enquanto o último era o aprisionamento e o abandono à antilógica.

O ser-humano do séc. XX conseguiu a 'proeza' de subverter essa separação grega, de abolir a distância dos mundos à custa de milhões de vidas. Conseguiu emergir as trevas para a superfície da Terra. Se para o Tártaro eram enviadas as almas inimigas do Olimpo, para as masmorras dos campos de concentração foram mandados as almas quase-mortas condenadas por terem nascido de religião, cor ou etnia contrárias às de seus algozes.

Ali, tal como no mundo inferior grego, o método da tortura era manter os prisioneiros vivos à beira da loucura, "gota a gota"; vivos somente enquanto úteis, privados de qualquer possibilidade de compreensão.

Isso fica muito nítido quando, em meio às atrocidades, Levi lê no fundo de uma gamela uma frase escrita em francês a riscos de faca: "ne pas chercher à comprendre" (não procurar compreender, não tentar entender). Escrita por alguém que precisava lembrar a si mesmo que qualquer tentativa de compreensão naquela situação era tanto vã e quanto perigosa. Sobrevida de Levi no campo dependeu de estar equilibrando-se constantemente nesse finíssimo limiar.

Mas Levi não é Tântalo. Em sua escrita, ao refletir sobre o processo de desumanização, o autor judeu italiano, que viveu e descreveu o inferno, medita sobre sua própria humanidade sobrevivida. Paradoxalmente, ao nos levar pra dentro do campo de concentração, nos faz trilhar um caminho contrário ao de Auschwitz.

Em movimento contrário ao desumano, sua escrita - seu esforço e sua necessidade de contar, de nos conectar à sua lógica e reflexão - o homem Levi sai do Tártaro e se aproxima dos deuses, do racional. Nos possibilita não uma compreensão, mas algum pensamento diante do abismo de nossa própria natureza.

Arrivistas, bajuladores e embusteiros? Non, mèrci! Non, mèrci! NON, MÈRCI!!

(www.gallica.bnf.fr)      Cyrano de Bergerac poderia facilmente ser entitulado “O Penacho de Cyrano” se assim fosse da vontade de Edmo...