Cyrano de Bergerac poderia facilmente ser entitulado “O Penacho de Cyrano” se assim fosse da vontade de Edmond Rostand, em
1897. Toda a peça gira em torno de sua personalidade forte, irascível e colérica.
Orgulho menor apenas que seu nariz (que ele não nos ouça 🙏). O penacho,
a crista, o topete, ainda hoje são sinônimos de petulância, de intransigência, mas também de vaidade e de altivez.
Apaixonado pela vida, pelas palavras e pela prima Roxane, o poeta-espadachim esgrima-se pelas sombras e pelos versos contra os poderosos França do século XVII, na qual reina uma nobreza hipócrita e decadente, sustentada por conchavos de subalternos compadrinhados, tão bajuladores quanto ambiciosos.
Seu penacho é delineado ao levantar-se contra essa gente lodosa, de cortesia barata, onde favores são trocados por interesses, onde desavergonha-se em ser parasita e leviano. O poeta sonha em ver a encenação de Agripina, uma peça de sua autoria. Mas deveria aceitar ter um “padrinho”, um mecenas que lhe abençoe, um protetor a quem vá dever favor eternamente e, pior, a quem terá de sujeitar seu texto a aprovação e a possíveis alterações e retoques. Ter sua obra maculada por um idiota qualquer? Que ofensa, que ferida na honra!
Cyrano se revolta em um discurso colérico sobre brio e dignidade. Dobrar-se, lamber botas, dever favores? Não! Rastejar-se em grupos de bajuladores e hipócritas? De modo algum! Bancar o cachorro e ganhar um osso para roer? Nunca! Mendigar elogios, esperar presentes, bancar o palhaço? Jamais! Ajoelhar-se diante de gente tão vil? Não, obrigado! Não, obrigado! Não, obrigado!
O poeta dá seu revide a essa gente desaplaudida não pelo peso da espada, mas pela leveza da palavra. Ao responder dessa forma àqueles que alcançam a glória rastejando-se, ergue seu penacho não como orgulho presunçoso, mas pela pluma altiva e graciosa polidez. O golpe certeiro e letal vem pela língua afiada. Touché!
A repetição de “Non, merci” aqui é não só traço retórico de sua ironia. “Merci”, “mercê”, “mercês” são sinônimos de graça — leveza, elegância — contra a fealdade e o peso dos tempos de genuflexão. Touché!
Cyrano não quer ser popular e famoso, coisa de lambedores de tapetes; quer ser livre, mas sabe que a liberdade é irmã da solidão. Oscar Wilde concordava: sempre há muito de medíocre na popularidade.
A segunda parte do discurso é solitária, sonhática e ébria — como quem busca conhecimento e esperança, entre livros, lunetas, astrolábios, ampulhetas e sob o Sol matinal — o herói divaga sobre sua tragédia íntima. Infeliz no amor, resta ao poeta casar-se com a Lua, beber de um só gole a vida, em toda sua intensidade e sua transitoriedade. Contra a mentira, a covardia e os conluios, sabe que seu final é trágico: “Não se luta apenas na esperança da vitória”, ele diz. Não vai subir muito, mas colherá o fruto do próprio pomar e a flor do próprio jardim.
* * *
Foi enorme o impacto que esse discurso me causou quando eu tinha 12 anos e li Cyrano de Bergerac, na escola, numa adaptação em prosa. Anos mais tarde comprei o texto em teatro, capa dura, cópia que ainda hoje guardo carinhosamente na estante. Lembro da catarse em ler uma peça de teatro pela primeira vez. Por ocasião do destino, na década de 1990, ganhava as telas o filme dirigido por Rappeneau e estrelado magnificamente por Depardieu; esses filmes que só passam às madrugadas. Ainda trago plasmado o mèrci enfurecido de Deperdieu ao invés do oxítono e correto merci. Em 2018 pude assistir no cinema, já como professor de francês, com meus alunos, no Festival Varilux de Cinema Francês (mas recomendo todas as adaptações cinematográficas antigas e atuais, inclusive Roxanne, com Steve Martin).
A escrita de Rostand, no final do romantismo, enseja o protagonista introspectivo, lírico e trágico, de aparência grotesca em contraste com a alma sublime, condenado à solidão e à desventura. Assim Victor Hugo cria seus protagonistas Quasímodo e Gwynplaine. A loucura aliada ao cavalheirismo vem de Dom Quichote de Cervantes. Também há spin-offs do classicismo: assim como Penélope, em Odisséia, Roxane recolhe-se à tecitura de um longo bordado ao rememorar seu amor e, assim como Ulisses, Cyrano é ao mesmo tempo explêndido guerreiro e mestre da oratória e da retórica, herói da palavra.
Devo muito a Cyrano. Foi minha primeira experiência com a língua francesa, pela qual continuo enamorado; meu primeiro longa-metragem de falas declamadas, em seus versos originais, do início ao fim. A essa altura, Cyrano fazia par com O Grande Mentecapto de Fernando Sabino e todos os filmes de Chaplin.
Hoje, ao assistir embevecido Cyrano de Bergerac na Comedie Française, dirigida por Emmanuel Daumas, sinto-me como quem paga, com juros, uma antíga dívida consigo mesmo... A atuação de Jennifer Decker (Roxane) e Laurent Lafitte (Cyrano) e de toda a trupe são realmente impressionantes.
Mas revisitar, “Non, merci”, talvez seja ainda mais arrebatador pois, após tantos anos, os antagonistas da história continuam por aí: tanto na época de Rostand quanto na nossa, o que não falta são bajuladores de plantão, carreiristas descarados, gente reptílica e mesquinha, de caráter volátil e honra de ocasião. Ao menos temos Cyrano para nos inspirar contra esses de alma servil e vulgar.
Sem spoilers: o último verso da peça termina com Cyrano de Bergerac dizendo algo como: posso não ter alcançado tudo que almejei, mas não carregarei nenhuma mácula, jamais abri mão de meu panache... do orgulho, da dignidade, do brio, da distinção, da autenticidade, daquilo que o torna único, etéreo e eterno.
Avoir l’œil qui regarde bien, la voix qui vibre.
Mettre, quand il vous plaît, son feutre de travers.
Pour un oui, pour un non, se battre, — ou faire un vers !
Travailler sans souci de gloire ou de fortune,
À tel voyage, auquel on pense, dans la lune !
N’écrire jamais rien qui de soi ne sortît,
Et modeste d’ailleurs, se dire : mon petit,
Si c’est dans ton jardin à toi que tu les cueilles !
Puis, s’il advient d’un peu triompher, par hasard,
Ne pas être obligé d’en rien rendre à César,
Vis-à-vis de soi-même en garder le mérite,
Bref, dédaignant d’être le lierre parasite,
Lors même qu’on n’est pas le chêne ou le tilleul,
Ne pas monter bien haut, peut-être, mais tout seul !»
ter a vista segura, e ter a voz que vibra.
Pôr o meu feltro à banda, e — espanto dos perversos —
Por um sim por um não me bater ou fazer versos.
Trabalhar, sem ter fito em lucros e honrarias.
Numa excursão à lua e noutras fantasias!
Nada escrever jamais que eu mesmo não produza.
E, modesto, dizer à minha altiva musa:
“Seja do teu pomar — teu próprio — o que tu colhas;
embora fruto, flor ou simplesmente folhas”.
Depois, se acaso a glória entrar pela janela,
a César não dever a mínima parcela.
Guardar para mim mesmo a gratidão mais pura;
enfim, sem ser a hera — a parasita obscura —
nem o carvalho e o til, gigantes do caminho —
subir, não muito, sim, porém, subir sozinho.
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